9 de jul. de 2014

O Curdistão e o Califado

Thierry Meyssan, RedeVoltaire, Damasco, 7 de julho de 2014

Em poucas semanas, duas entidades, às quais poucas pessoas garantiam um futuro, estão em vias de o concretizar:  o Curdistão e o Califado.
A análise de Thierry Meyssan, segundo a qual estas duas entidades agem, ambas, sob instigação de Washington, é confirmada pelos acontecimenos. Ele examina aqui os últimos desenvolvimentos.

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Desde a queda de Mossul, eu afirmava que a guerra atual no Iraque não devia ser interpretada como uma ação do EIIL mas, sim, como uma ofensiva combinada dos jihadistas e do governo local curdo, afim de aplicar o plano norte-americano de remodelagem do país [1]. Estava, então, sózinho, e esta visão das coisas ia contra a corrente. Três semanas depois, ela tornou-se evidente.

A criação do Curdistão


A 20 de junho, Israel comprava do governo local curdo o petróleo que ele havia roubado em Kirkurk, apesar do alerta internacional emitido pelo governo federal iraquiano [2]. O trânsito do petróleo tinha sido facilitado pelo EIIL, que controla o oleoduto, e pela Turquia, que deixou a mercadoria ser carregada num navio-tanque no porto de Ceyhan.

A 25 de junho, os partidos políticos curdos do Iraque puseram de lado as suas discordâncias e formaram um governo de unidade local. Até aí, eles estavam divididos entre duas grandes coligações:  uma pró-turca e pró-israelita dirigida pelo Partido democrático do Curdistão (PDK) dos Barzani (clã - NT), e a outra pró-iraniana e pró-síria, dirigida pela União Patriótica do Curdistão (UPK) de Talabani (Jalal - NT). A união entre estas duas facções não teria sido possível sem um acordo prévio entre Telavive, Washington e Teerã.

Mendi Safadi, um agente político druso [Os drusos são uma pequena comunidade religiosa autônoma que reside sobretudo no Líbano, Israel, Síria, Turquia e Jordânia. Não são considerados muçulmanos apesar de alguns drusos dizerem que a sua religião é islâmica. A maioria dos drusos considera-se árabe. Existem cerca de um milhão de drusos em todo o mundo, a maioria dos quais vivendo no Oriente Médio.] que assegura a ligação entre Israel e os Contras na Síria, transmitiu a Reuven Rivlin uma carta do Partido Curdo de esquerda na Síria que o felicita pela sua eleição para o Knesset (parlamento de Israel - NT), e apela ao seu apoio à criação de um Curdistão independente, às custas da Síria e do Iraque.

Em 26 e 27 de junho, o ministro britânico das Relações Exteriores William Hague visitou Bagdá e Erbil. Como estabelecido, ele apelou ao Primeiro Ministro Nouri al-Maliki para formar um governo inclusivo, sabendo de antemão que ele não o faria. Este exercício estilístico fez sorrir a imprensa londrina, para a qual aquele conselho chegava «um pouco tarde» [3]. Depois, ele discutiu com Massoud Barzani a independência futura do Curdistão. Como de costume, a passagem dos britânicos foi um momento decisivo.

A 29 de junho, o Primeiro Ministro israelita Benyamin Netanyahou quebrou o tabu:  
quando de um discurso no Instituto para os Estudos de Segurança Nacional da Universidade de Telavive, ele anunciou que Israel apoiava a criação de um Estado curdo independente. Prudentemente, ele absteve-se de precisar as fronteiras, que poderão sempre vir a evoluir com o tempo [4].

A 3 de julho, o presidente do governo local do Curdistão Massoud Barzani apelava ao seu parlamento para organizar um referendo de autodeterminação. Sem surpresa, a Casa Branca reiterou publicamente o seu apoio a «um Iraque democrático, pluralista e unido», enquanto o vice-presidente Joe Biden recebia, a portas fechadas, o chefe de gabinete de Massoud Barzani, Fouad Hussein, para afinar os detalhes do referendo.

Não parece que o PDK (maioritário no Iraque, mas uma minoria na Síria) seja capaz de organizar um referendo simultâneo nos dois países. Washington deverá, pois, dar-se por satisfeito com um Curdistão separado do Iraque atual, e adiar para mais tarde as partições da Síria e da Turquia. No período atual, ele multiplica as mensagens apaziguadoras em direção a Damasco (com o qual voltou a falar) e Ancara, que não acredita em nada disso.

A pergunta que todos se colocam é qual será a política externa desse novo Estado. Até aqui, Barzani conseguiu criar uma ilha de prosperidade, mas est
á alinhado a Israel. Se essa opção se mantiver, isso modificar completamente as relações estratégicas na região.

O espectro do Califado

Concomitantemente, o EIIL (rebatizado IA) proclamou o Califado. Num longo texto lírico, salpicado com citações do Alcorão, ele anunciou que tendo sido capaz de impôr a lei Sharia no vasto território sob seu controle, na Síria e no Iraque, chegara à conclusão de que o tempo do Califado tinha chegado. Anunciou ter eleito Califa o seu chefe Abu Bakr al-Baghdadi, e que todos os crentes, onde quer que se encontrem, têm o dever de se submeter [
5]. Como nenhuma fotografia do novo chefe de Estado foi publicada, ninguém pode saber se al-Bagdhadi realmente existe ou se o nome do «califa Ibrahim» não é mais que um engodo.

Embora a tomada do norte do Iraque tenha sido bem recebida por uma parte do mundo muçulmano, duvida-se que a pretensão de governá-la, como um todo, não tenha sido apreciada de modo muito diferente.

A Al-Qaida no Magrebe Islâmico (AQMI) tem dado o seu apoio «aos heróis do Emirado Islâmico». Enquanto a Al-Qaida na Península Arábica (AQAP) enviou-lhe os seus melhores votos de êxito e de vitórias. Os outros grupos afiliados à Al-Qaida, como o Boko Haram, na Nigéria, e a Shabaab, na Somália, deverão jurar fidelidade em breve. Assistir-se-ia, assim, a uma mutação da Al-Qaida, que passaria do estatuto de rede terrorista internacional ao de Estado não reconhecido.

Seja como fôr, o EI continua a progredir com cautela. Ele sabe lutar dentro de certos limites, e é cuidadoso para não ofender os interesses de Washington e de seus aliados, inclusive os circunstanciais. Assim, em Samarra, ele cuidadosamente evitou atacar os mausoléus dos imãs xiitas de forma a não provocar o Irã.

Desde já, muitas vozes se levantam em Washington para confirmar a remodelação do Iraque. Assim, Michael Hayden, antigo diretor da NSA e da CIA, pronunciou na Fox News o seguinte veredito: «Com a conquista pelos insurgentes da maior parte do território sunita, o Iraque praticamente já deixou de existir. A partição é inevitável». As suas declarações são acompanhadas por pedidos de intervenção. O antigo assessor de George Bush, depois embaixador no Iraque de Barack Obama, James Jeffrey, comentou: «[Os jihadistas] nunca pararam, mesmo quando eu estava lá em 2010 e 2011. Eles foram completamente vencidos e perderam a sua população. Nós estávamos nos seus calcanhares e eles não se sustentaram. Não há nenhum meio de os conseguir moderar, nenhum modo de os conter - precisamos mat
-los». A imprensa atlantista interpreta essas tomadas de posição como um debate entre partidários da divisão do Iraque e partidários de sua unidade pela força. Na verdade, o programa de Washington não poderia ser mais claro:  primeiro, deixar os jihadistas dividir o Iraque (e possívelmente a Arábia Saudita), para em seguida esmagá-los, uma vez que seu trabalho esteja concluído.

Nessa perspectiva, o presidente Obama ouve os conselheiros e vai levando o assunto o máximo que pode. Em violação dos acordos de defesa iraquiano-americanos, ele só enviou para o local 800 homens, dos quais apenas 300 para orientar as forças iraquianas - os outros estando destinados à proteção de sua embaixada.


Tradução
Alva

Fonte
Al-Watan (Síria)


NOTES:
[1] “Washington Relaunches its Iraq Partition Project”; “Jihadism and the Petroleum Industry”, Translation Roger Lagassé; « ÉIIL : Quelle cible après l’Irak ? », Thierry Meyssan, Voltaire Network, 16, 23, 30 June 2014.

[2] “Israel accepts first delivery of disputed Kurdish pipeline oil”, Julia Payne,Reuters, June 20, 2014.

[3] « William Hague flies in to Baghdadwith an appeal for unity – but it’s a bit late for that », Patrick Cockburn, The Independent, June 26, 2014.

[4] « Address by PM Netanyahu at the Institute for National Security Studies», PM’s Office, June 29, 2014.

[5] “Proclamation of the Caliphate”, Voltaire Network, 1 July 2014.


Thierry Meyssan

Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa aparecem na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).


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