28 de ago. de 2011

Tragédia na Líbia


Talvez, como opinam alguns analistas, a onda de 'revoluções' no Oriente Médio e norte da África, chamada 'primavera árabe', tenha sido iniciada por forças outras que as dos povos dos países envolvidos, isto é, talvez tenha sido iniciada pelas forças imperialistas da OTAN e seus aliados (fazendo uso de mercenários ignorantes e gananciosos).  Mas, seja lá como for, a reação daqueles povos aos movimentos iniciais está surpreendendo a todos, com certeza!

Os povos da Tunísia, do Egito, de Bharain, do Iêmen, do Líbano e da Síria parecem saber, de alguma forma, que sua soberania é muito importante, apesar da contra-informação/lavagem cerebral perpetradas pela mídia comercial.  Cada um desses países tem sua história.  Mas, os conflitos atuais, principalmente se de fato encetados por aqueles poderosos agentes externos, serão provavelmente 'resolvidos' contra os interesses de seus povos.  Em outras palavras, os imperialistas cuidarão para que nada mude na balança de interesses capitalistas/imperialistas na região, e para que as 'soluções' encontradas sejam duradouras – isto é, para que, a força e a ferro, os interesses dos povos envolvidos sejam mais uma vez desprezados a favor dos interesses da elite capitalista/imperialista local e internacional.

Entretanto, o que se passa na Líbia, situada no norte da África, é diferente. Aqui, a balança de interesses, que pendia para o lado soberano do povo (uma sociedade basicamente tribal) desde que Muammar Gaddafi liberou o país dos vínculos imperialistas, talvez passe novamente para o lado dos assassinos e ladrões se estes conseguirem restaurar seu regime imperialista naquele país.

Mais enojante ainda é a caça hedionda que estão a perpetrar contra Muammar Gaddafi, o líder do povo líbio, por ter-se posicionado contra os interesses imperialistas-zionistas. É possível que os assassinos da OTAN o matem como o fizeram com Sadam Houssain – da mesma forma bruta, grotesca, desafiante, desumana e humilhante tanto à pessoa assassinada como a todos aqueles que compartilham seus valores políticos e morais.

Sem dúvida, vivemos em um momento trágico da história da humanidade: os povos de diversas regiões do mundo estão sendo atacados mais uma vez, como ocorreu na época do colonialismo, por gangsters calculistas e poderosos. Muitos ainda acreditam que podem vencer... Muitos, com certeza, lutarão até a morte por essa vitória, mesmo que demorada e sangrenta...

Os ataques da OTAN e seus aliados contra a Líbia são, assim como os foram os ataques contra o Iraque, crimes hediondos do capitalismo/imperialismo no século XXI, quando se esperava que os seres humanos estariam, finalmente, em condições de cooperar ao invés de competir... E indicam que NENHUM país, além dos pertencentes à 'gang dos aliados', estará a salvo se seu povo optar pela auto-determinação ao invés da submissão ao império e aos seus gangsters no poder...

O texto abaixo reflete o estado de espírito da grande maioria do povo da Líbia, hoje:
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OTAN envolvendo-se em uma grande derrota e em uma grande queda

Michelle J. Santos, http://mathaba.net/go/?http://thesantosrepublic.com/2011/08/un-security-council-usnato-appointed-lackeys-transitional-council-in-benghazi-is-rejected-by-all-libyan-tribes-by-a-proclamation/,  27 agosto 2011
 OTAN, nós lhe dissemos para deixar a Líbia em paz;  quanto mais arrogante você for, mais dura vai ser sua queda.
"Nos não aceitamos e não aceitaremos qualquer autoridade que não seja a autoridade que escolhemos com nosso livre-arbítrio que são o Congresso do Povo e as Comissões do Povo."

Caros EEUU, França, Reino Unido e OTAN, antes de voces mentirem para o mundo que vocês têm a autoridade e o direito de invadir uma nação soberana, fazendo o mundo acreditar que os líbios querem vocês na Líbia, eu gostaria de reiterar o que 200 tribos na Líbia Oriental, onde se encontra Benghazi, emitiram em sua proclamação em 26 de julho de 2011:

"Por esta carta para a Cúpula Africana extraordinária, organizada em Adis Abeba, os representantes das tribos orientais do Grande Jamahiriya confirmam sua rejeição completa do que é chamado o Conselho Transitório em Benghazi que não foi indicado nem eleito pelos representantes tribais mas imposto pela OTAN."
"O que é chamado de Conselho Transitório em Benghazi nos foi imposto pela OTAN e nós o rejeitamos completamente.  É democracia impor pessoas armadas sobre o povo de Benghazi, quando muitos desses líderes armados não são nem mesmo da Líbia ou de tribos da Líbia, mas vêm da Tunísia e de outros países?"
"O Conselho Tribal garante sua contínua cooperação com a União Africana nas suas sugestões destinadas a ajudar a impedir a agressão contra o povo líbio."
"O Conselho Tribal condena a cruzada agressiva executada pela OTAN e pelas forças árabes regressivas contra o Grande Jamahiriya pois trata-se de uma grave ameaça para os civís da Líbia à medida em que continua a matá-los enquanto alvos civís das bombas da OTAN…"
Nós não aceitamos e não aceitaremos qualquer autoridade que não seja a autoridade que escolhemos com nosso livre-arbítrio, que são o Congresso do Povo e as Comissões do Povo, e a liderança social popular, e nos oporemos com todos os meios aos rebeldes da OTAN e seu massacre, violência e mutilação de cadáveres.  Temos a intenção de opor com todos os meios a nossa disposição os agressores das cruzadas da OTAN e seus lacaios escolhidos.
Vocês entendem isso, membros da OTAN:  Albânia, Bélgica, Bulgária, Canadá, Croácia, República Checa, Dinamarca, Estônia, França, Alemanha, Grécia, Hungria, Islândia, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Países Baixos, Noruega, Polônia, Portugal, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Turquia, Reino Unido e os Estados Unidos?


Acho que é por isso que todos vocês estavam tão desesperados para fazer a transição no último fim de semana.  Em vez de vocês recuarem, agora vocês sabem que, fazendo o que estão a fazer contra Gaddafi e contra a Líbia, vocês desorganizaram todos os negócios do petróleo e causarão ao seu povo em suas nações e ao redor do mundo muito mais graves dificuldades econômicas.


Agora tenho que explicar ao planeta as enormes implicações disso.  Se vocês parassem os jogos que planejaram em 2010 e usassem apenas jogos de assimilação, nós não teríamos ido tão longe, não é?  Agora, todos vocês – 28 – e mais os outros países que apoiam todas as mentiras da mídia e a propaganda pela França, Reino Unido e Estados Unidos destruíram todas as relações diplomáticas conosco, agora e no futuro.

O fato é que vocês, EUA/França/Grã-Bretanha/OTAN, vão perder isto.  Nós lhes dissemos para recuar da Líbia.  Quanto mais arrogantes voces forem, mais dura será sua queda.  A luta ainda não acabou.

22 de abr. de 2011

Uma tragédia diferente no Rio...

Reproduzo abaixo artigo excelente do Frei Betto.

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Tragédia carioca
Frei Betto, ADITAL, 15 Abril 2011


Doze adolescentes, de 13 a 15 anos, foram cruelmente assassinados, a 7 de abril, nas salas de aula de uma escola de Realengo, Rio. Outras tantas ficaram feridas. O criminoso, de 23 anos, disparou na própria cabeça a 66a bala saída de seus dois revólveres.

Massacre como este nunca havia ocorrido no Brasil. São frequentes nos EUA. E enchem o prato da mídia em busca de audiência. A cada telejornal, reaparecem as fotos das crianças, o depoimento de parentes e amigos, os sonhos que nutriam...

Em Antígona, de Sófocles (496-405 a.C.), a mulher que dá nome à peça rebela-se contra o Estado que a proíbe de sepultar seu irmão. Hoje, a exploração midiática torna os corpos insepultos. As famílias das crianças sacrificadas, ontem no anonimato, agora ocupam manchetes e são alvos de holofotes. É a morte como sucesso de público!

O assassino foi o único culpado? Tudo decorreu de um "monstro” movido por transtornos mentais? A sociedade que engendra esse tipo de pessoa não tem nenhuma responsabilidade?

Um gesto brutal como o do rapaz que matou à queima-roupa 11 meninas e 1 menino não é fruto de geração espontânea. Há um histórico de distúrbios familiares, humilhações escolares (bulliyng) e discriminações sociais, indiferença de adultos frente a uma criança com notórios sinais de desajustes.

Quando pais têm mais tempo para dedicar à internet e aos negócios que aos filhos; adolescentes ingerem bebida alcoólica misturada a energéticos; alunos ameaçam professores; crianças se recusam a dar lugar no ônibus aos mais velhos... o sinal vermelho acende e o alarme deveria soar.

O que esperar de uma sociedade que exalta a criminalidade, os mafiosos, a violência, através de filmes e programas de TV, e quase nunca valoriza quem luta pela paz, é solidário aos pobres, trabalha anonimamente em favelas para, através do teatro e da música, salvar crianças de situações de risco?

Há anos acompanho o trabalho do Grupo Tear de Dança, que congrega jovens de baixa renda da zona Norte do Rio. Embora seus espetáculos sejam de boa qualidade artística, sei bem das imensas dificuldades de patrocínio, de divulgação, de espaço na mídia para noticiar suas apresentações.

É triste e preocupante ver o talento de um jovem bailarino se perder porque, premido pela necessidade, ele deve retornar ao trabalho de ajudante de pedreiro ou, a bailarina, de vendedora ambulante.

Como evitar novos massacres semelhantes ao de Realengo? Quase dois terços dos eleitores brasileiros aprovaram, no plebiscito de 2005, o comércio de armas. As lojas vendem armas de brinquedo presenteadas às crianças. Os videogames ensinam como se tornar assassino virtual.

Há no Brasil 14 milhões de armas em mãos de civis, das quais metade ilegais, como as duas que portava o assassino dos alunos da escola Tasso da Silveira.

Segundo o deputado Marcelo Freixo (PSOL), existem no estado do Rio 805 mil armas em mãos de civis, da quais 581 mil são ilegais, muitas em mãos de bandidos. "O cidadão que compra uma arma para ter em casa, pensando em se proteger, acaba armando os criminosos”, afirmou no Rio o delegado Anderson Bichara, da Delegacia de Repressão ao Tráfico Ilícito de Armas.

Como dar um basta à violência se o Instituto Nobel da Noruega concede o prêmio da Paz a guerreiros como Henry Kissinger, Menachem Begin, Shimon Peres e Barack Obama?

Monstro é tão-somente quem entra armado numa escola, num supermercado, num cinema, e mata a esmo? Como qualificar a decisão do governo dos EUA de, após vencer a guerra contra a Alemanha e o Japão, jogar a bomba atômica sobre a pacífica população de Hiroshima, a 6 de agosto de 1945 (140 mil mortos), e três dias depois outra bomba atômica sobre a população de Nagasaki (80 mil mortos)?

Hitler e Stalin também podem ser qualificados de "monstros” e seus crimes são sobejamente conhecidos. Mas não há uma certa domesticação de nossas consciências e sensibilidades quando somos coniventes, ainda que por inação ou omissão, frente ao massacre dos povos iraquiano, afegão e líbio?

A paz jamais virá como resultado do equilíbrio de forças. Há nove séculos o profeta Isaías alertou-nos: ela só vigorará como fruto de justiça.

Mas quem tem ouvidos para ouvir?

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O governo Dilma, com razão, não gostou do relatório do Departamento de Estado norte-americano sobre os direitos humanos no Brasil, divulgado semana passada. O Itamaraty fez uma nota de protesto. É pouco. Só há uma resposta à altura: o Brasil emitir um relatório sobre os direitos humanos nos EUA.

* Escritor e assessor de movimentos sociais.

25 de fev. de 2011

Agroecologia ou agronegócio?

Reproduzo abaixo excelente artigo de Osvaldo Russo, publicado no Correio da Cidadania.

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Agroecologia ou agronegócio?
Osvaldo Russo, Correio da Cidadania, 18 fevereiro 2011

Apesar dos assentamentos agrários (um milhão) realizados no Brasil desde a criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 1970, dos quais mais da metade de 2003 para cá, os dados do Censo Agropecuário 2006, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no final de setembro de 2009, reafirmam, no entanto, o velho quadro de concentração fundiária no Brasil.

As pequenas propriedades (com menos de 10 hectares) ocupam apenas 2,7% da área ocupada por estabelecimentos rurais, enquanto as grandes propriedades (com mais de mil hectares) ocupam 43% da área total. O quadro de desigualdade é ressaltado pelo fato de as pequenas propriedades representarem 47% do total de estabelecimentos rurais, enquanto os latifúndios correspondem a apenas 0,9% desse total.

A concentração e a desigualdade podem ser comprovadas pela aferição do Índice de Gini da estrutura agrária do país. Quanto mais perto esse índice está de 1, maior a concentração. Em 2006, o Censo mostra um Gini de 0,872 para a estrutura agrária brasileira, superior aos índices apurados nos anos de 1985 (0,857) e 1995 (0,856).

Nos pequenos estabelecimentos (área inferior a 200 hectares) estão quase 85% dos trabalhadores empregados. Embora a soma das áreas dos pequenos estabelecimentos (área inferior a 200 hectares) represente apenas 30,3% do total das áreas, os pequenos estabelecimentos respondem por 84,4% das pessoas empregadas. Os dados também mostram que esses trabalhadores fazem parte da agricultura familiar, cujos 12,8 milhões de produtores e seus parentes representam 77% do total de pessoas ocupadas.

Apesar de ocupar apenas ¼ da área, a agricultura familiar responde por 38% do valor da produção (R$ 54,4 bilhões). Mesmo cultivando uma área menor, a agricultura familiar é responsável por garantir a segurança alimentar do país, gerando os produtos da cesta básica consumidos internamente. A agricultura familiar responde por 87% da produção de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% das aves, 30% dos bovinos e, ainda, 21% do trigo. A cultura com menor participação da agricultura familiar foi a soja (16%).

As informações do IBGE revelam também como a agricultura familiar é mais eficiente na utilização de suas terras: geram um Valor Bruto da Produção (VBP) de R$ 677/hectare, enquanto que a não familiar gera um VBP de R$ 358/hectare (89% a mais). Geram 15 postos de trabalho/100 ha, enquanto que a não familiar gera apenas 1,7 pessoas/100 ha.

Não por coincidência, o aumento observado da devastação das nossas florestas foi maior no Norte e no Centro-Oeste, exatamente onde se deu a expansão da pecuária extensiva, da plantação de soja e das atividades do agronegócio. As exportações de commodities agrícolas transformaram a alimentação em mercadoria, gerando lucros fabulosos sem qualquer preocupação com a necessidade de alimentar as pessoas.

Segundo a Organização para as Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), um bilhão de pessoas passa fome no mundo. Ou mudamos a matriz da produção de bens agrícolas, democratizando a terra e priorizando a produção de base familiar, ou estaremos inviabilizando a vida saudável no planeta.

A crise mundial do capital aponta para novas perspectivas de mobilização social e afirmação da agricultura camponesa como estratégica ao desenvolvimento sustentável, onde a Reforma Agrária tenha centralidade, democratizando a vida no campo, gerando empregos, respeitando o meio ambiente, promovendo o ser humano e produzindo alimentos saudáveis que garantam não só a segurança, mas a soberania alimentar do país.

Os dados do Censo reafirmam a capacidade de resistência da agricultura familiar, que adota um modo de produção camponês diferente daquele do agronegócio, constituindo-se em uma das alternativas às crises econômicas, sociais, alimentares e ecológicas provocadas pela globalização capitalista.

Há necessidade, entretanto, de criação de um programa de incentivos para a organização de associações de agricultores familiares, garantindo o acesso dos camponeses e suas famílias a um sistema público, com a participação dos movimentos sociais. Para a viabilização desse novo modelo agrícola, é preciso acelerar e qualificar a Reforma Agrária e o apoio à agricultura familiar para além da obtenção da terra, do mero assentamento e do acesso ao crédito.

É preciso, sobretudo, romper progressivamente com o modelo atual, hegemonizado pelo agronegócio, priorizando a agroecologia e integrando a agricultura camponesa a um novo tipo de desenvolvimento.

Osvaldo Russo, estatístico, ex-presidente do Incra, é diretor da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan).

27 de jan. de 2011

O Golpe da Terra

Numa entrevista extremamente importante publicada pelo Jornal Sem Terra (ver abaixo), o engenheiro agrônomo e cientista social Horácio Martins de Carvalho nos relata alguns aspéctos sórdidos da ocupação da terra no Brasil que têm passado 'despercebidos' pelo governo mas que estão na raiz de muitos dos problemas que nos afligem no campo e nas cidades.  Trata-se de um golpe.  Não se pode esperar que a mídia comercial divulgue tal golpe à nação – aliás, seu silêncio denuncia sua conivência com tal golpe.  Os fatos relatados nesta entrevista são, agora, do conhecimento das organizações que representam os movimentos social, sindical e estudantil.  A luta dos trabalhadores deverá voltar-se com determinação para acabar com esse golpe, ampliando os limites de suas reivindicações.


Leia e confira:

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O Brasil é uma economia agrícola subalterna

Nesta entrevista ao Jornal Sem Terra de janeiro, o engenheiro agrônomo e cientista social Horácio Martins de Carvalho faz uma profunda análise sobre a organização do agronegócio no mundo hoje e o lugar do Brasil nesse cenário.  País com o maior estoque de terras agricultáveis, clima favorável à produção e governos entreguistas, o Brasil se configura, segundo Horácio, como o terceiro país na lista de prioridades dos planos de investimentos das grandes empresas transnacionais, que controlam os mercados de alimentos e agroenergia.

Joana Tavares, Jornal Sem Terra – Setor de Comunicação do MST /MST, 25 de janeiro de 2011

JST – Como se explica o aumento da busca por terras em todo o mundo e quais as consequências no controle estrangeiro sobre as terras agricultáveis?

HC – O Incra estima que 4,34 milhões de hectares em todo o Brasil já estejam em mãos de capitalistas de outros países.  Essa é uma estatística modesta devido à camuflagem que a concepção vigente de ‘empresa nacional’ proporciona, ao tolerar servilmente na sua composição societária a participação de mais de 90% de capital estrangeiro.  O que motiva a apropriação privada de terras agricultáveis pelas empresas transnacionais é a possibilidade efetiva de poucas dessas empresas exercerem o controle mundial sobre a oferta, comercialização e beneficiamento de alimentos e agrocombustíveis, além de se afirmarem como um império setorial sobre um setor fundamental da vida dos povos.  A apropriação privada das terras agricultáveis passou a ser considerada pelas agências multilaterais Banco Mundial, FAO, UNCTAD e FIDA como investimentos agrícolas para o ‘desenvolvimento econômico nacional’.  Para acobertar essa ocupação neocolonial das terras agricultáveis no mundo, foi elaborado, pelas agências acima citadas, um Código de Conduta, apresentado em abril de 2010 em Washington, capital dos Estados Unidos, durante a conferência anual de terras do Banco Mundial.  O código objetiva a legitimação do mercado mundial de terras agricultáveis pelas grandes empresas transnacionais privadas e estatais.  E como o recurso terra é limitado, o seu controle pela apropriação privada e ou pelo arrendamento das terras agricultáveis em todo o mundo se tornou prioridade geopolítica estratégica do agronegócio internacional.  O Brasil é o país que possui o maior estoque de terras agricultáveis, um clima favorável à produção agrícola e governos entreguistas.  Essa conjugação de fatores tem facilitado a aquisição de terras por estrangeiros e contribuído decisivamente para a negação da soberania alimentar e a nacional, submetendo os destinos do país às estratégias de negócios das grandes empresas nacionais e transnacionais. 

JST – Calcula-se que o agronegócio tenha recebido cerca de R$ 90 bilhões de crédito para gerar um PIB de R$ 120 bi em 2010.  Como se explica essa pouca produtividade?

HC – A regra na lógica do agronegócio é a reprodução dos interesses privados na agricultura a partir de recursos públicos, na sua maior parte a fundos politicamente perdidos para o contribuinte brasileiro.  Isso inclui não apenas o crédito rural subsidiado e constantemente renegociado como as renúncias fiscais, redução de alíquotas e isenções de impostos.  Sob essa lógica, ser grande empresário do agronegócio não é difícil, ainda que suas lideranças apregoem ideologicamente o livre mercado, a concorrência e a ausência do Estado na condução dos seus negócios.  Não fazem mais do que sempre fizeram as classes dominantes no campo desde o período do Brasil colonial:  falar contra a presença do Estado na economia e usufruir dele o máximo possível, sempre em detrimento da maioria da população.  Nessas condições se explica, mesmo sendo imoral, que o agronegócio receba cerca de R$ 90 bilhões de crédito para gerar um PIB de R$ 120, de um total do PIB agrícola de R$ 160 bilhões.  Não é de se estranhar, portanto, que o Brasil seja o terceiro país na lista de prioridades nos planos de investimentos no exterior das grandes empresas transnacionais.

JST – Por que se favorece o agronegócio quando a pequena agricultura produz mais alimentos para o mercado interno?

HC – O agronegócio se constitui numa fração importante da classe dominante no país:  se apropriou privadamente da maior parte do território rural.  A ‘modernização e a artificialização’ da agricultura, iniciada na década de 1950, tornou a burguesia agrária no Brasil forte compradora de produtos (insumos agrícolas, máquinas) de outras frações da burguesia.  E os principais fornecedores desses insumos têm sido as empresas transnacionais do ramo da indústria química como a Bayer, Basf, Aventis, Dow, Monsanto e Syngenta.  Os camponeses produzem mais alimentos do que o agronegócio, representam 84,4% do total de estabelecimentos rurais do país e defendem a soberania alimentar e popular.  No entanto, não faz parte da concepção de mundo hegemônica no Brasil a proposta social de soberania alimentar e, menos ainda, de soberania popular.  É mais fácil para os governos e para as empresas do agronegócio garantirem a segurança alimentar (não a soberania alimentar) pela importação de alimentos do que destinar recursos públicos para a melhoria da produção e da produtividade dos camponeses.  Essa tendência se consolida quando os alimentos básicos como arroz, feijão, mandioca e leite, entre outros, se constituem em mercadorias, com preços definidos nos mercados.  Esses produtos, outrora produzidos predominantemente pelos camponeses, passam a se constituir, também, em objeto de cobiça do agronegócio pelas margens de lucro que podem e poderão obter nas condições oligopolistas, tanto no mercado nacional como internacional.  Ora, como poderia o governo liberal brasileiro deixar de fornecer acesso facilitado aos recursos públicos para o agronegócio se este é um dos elos fundamentais da cadeia de interesses do complexo mundial da indústria química, de alimentos e de agroenergia?  E se no ano de 2010 o Brasil passou a ser o maior consumidor de agrotóxicos do mundo?

JST – Quais os principais impactos do elevado consumo de agrotóxicos?  Por que o Brasil se sujeita a aceitar venenos em sua agricultura proibidos em outros países?

HC – Os principais impactos do elevado uso de agrotóxicos são a contaminação e degradação do meio ambiente, o comprometimento da saúde dos trabalhadores rurais e dos camponeses e a redução da biodiversidade.  Esses impactos resultam em um modelo tecnológico onde somente o lucro comanda a lógica da produção.  E não é o Brasil que se sujeita a aceitar venenos para a sua agricultura proibidos em outros países.  São parcelas do empresariado do agronegócio que, movidos por uma constante ganância incontida, buscam as formas mais infames de obter tais produtos.  Os cinco cultivos que mais consumiram agrotóxicos em 2008 foram soja, milho, cana-de-açúcar, algodão e citros, representando 87,21% do total comercializado no país nesse ano.  E esses cultivos são os de maior presença no Valor Bruto da Produção (VBP) agrícola nacional.  As sementes híbridas e os organismos geneticamente modificados (OGMs) são os principais responsáveis pela demanda de agrotóxicos.  As grandes empresas transnacionais como a Dupont, Aventis, AstraZenec e Monsanto têm nos OGMs parte importante de suas estratégias comerciais para vender agrotóxicos.  As maiores empresas produtores desses venenos são Syngenta, Bayer, Monsanto, Basf, Dow, DuPont e Nufarm, as quais lucraram nos seus negócios mundiais em 2008 cerca de 40 bilhões de dólares.

JST – Qual o papel da agricultura brasileira no jogo de forças internacional?

HC – A estrutura da produção agropecuária e florestal dos médios e grandes estabelecimentos rurais no Brasil sempre se moldou de forma a atender aos interesses da burguesia agroexportadora, assim como à demanda mundial de produtos do setor primário.  E essa tendência se torna cada vez mais acentuada na medida direta que as grandes empresas transnacionais dominam a oferta interna de sementes, insumos, máquinas e a agroindustrialização, assim como o comércio internacional de commodities.  Isso significa que essas empresas transnacionais possuem o controle estratégico da produção agropecuária e florestal no país.  Essa situação é agravada pela incipiente agregação de valor aos produtos da produção agropecuária e florestal que são exportados.  A agricultura brasileira se reafirma na divisão internacional da produção social como produtora de matérias-primas para a agroindústria.  A partir da racionalidade do agronegócio, se confirma como um ramo da indústria.  Portanto, uma economia agrícola subalterna.

JST – Segundo o anuário do agronegócio referente a 2010, os ativos das 50 maiores empresas atingiram R$ 189 bilhões.  Como se explica o poder do capital financeiro sobre a agricultura e qual a perspectiva para 2011?

HC – A agricultura do agronegócio, ao se tornar efetivamente um ramo da indústria, proporcionou condições mais efetivas para o domínio dos grandes conglomerados de empresas transnacionais da indústria química sobre a produção de alimentos, fibras e a agroenergia.  A oligopolização desses mercados foi uma consequência esperada sob a concepção neoliberal de sociedade.  A terra, a água doce, as florestas, o litoral, enfim, os recursos naturais, amplo senso, tornaram-se mercadorias, portanto, objeto de lucro e de negociação nas bolsas.  Vivenciamos, há algumas décadas, uma transição fundamental na economia mundial provocada pela hegemonia do capital financeiro:  todas as dimensões da vida se tornaram mercadoria e o lucro, a única referência na gestão das sociedades.

JST – Quais são as perspectivas políticas para o próximo período em relação à agricultura?

HC – A não ser que os movimentos sociais e sindicais populares no campo superem o abestalhamento a que foram reduzidos devido aos processos já crônicos de reivindicação, protesto e dependência financeira dos governos, tudo leva a crer que a expansão capitalista no campo, com a consequente concentração e centralização da renda e da riqueza, irá se ampliar.  A luta de classes se tornou “luta com classe”.  A desagregação do campesinato e dos pequenos e médios produtores rurais se dará sob diversas maneiras, desde aquelas tradicionais movidas pela truculência física e econômica da criadagem do grande capital, até a cooptação pelos contratos de produção com as agroindústrias.  A proliferação dos contratos de produção com amplas parcelas do campesinato evidencia que as empresas capitalistas desejam controlar não apenas os recursos naturais e, em especial, a terra, mas também a oferta dos produtos que compõem a dieta básica da população.  A correlação de forças para a adoção e implantação de políticas públicas que sejam favoráveis à soberania alimentar é bastante desfavorável no contexto atual devido, em especial, às disposições governamentais favoráveis ao agronegócio e ao capital transnacional.  Porém, será a natureza imperialista da transferência de tecnologia agropecuária por setores governamentais do país, em consonância com os interesses das empresas transnacionais de insumos agrícolas e das agências multilaterais, que marcará a presença indesejável do Brasil nos países do Hemisfério Sul.  A Via Campesina do Brasil e o MST poderão marcar presença não apenas pela sua militância crítica, mas, sobretudo, se forem capazes de concretizar uma aliança social popular no campo, munida tanto de uma crítica social radical ao projeto capitalista hegemônico, como de uma proposta para um novo marco civilizatório no campo.

26 de jan. de 2011

Agenda Unificada

O artigo abaixo descreve o desabrochar de uma importante união na luta por interesses comuns maiores:

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MST, UNE e centrais buscam unificar agenda

Luana Bonone, Vermelho, 24 janeiro 2011

As maiores organizações que representam os movimentos social, sindical e estudantil do país planejam a elaboração de uma agenda conjunta, a ser oferecida à presidente Dilma Rousseff. Nela, constarão as prioridades pelas quais o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), as centrais sindicais - sobretudo a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) – e a União Nacional dos Estudantes (UNE) brigarão juntos.

O fortalecimento deste bloco de representação, cujas entidades já se organizam na Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), foi discutido em agosto do ano passado, durante as eleições presidenciais - todos apoiaram a presidente eleita no segundo turno - e a conversa será retomada nas próximas semanas.

"A CUT elaborou um documento com 213 propostas para o novo governo. Como nós, as outras organizações estão fazendo o mesmo, o que cria um volume grande de pautas", avalia o presidente da central, Artur Henrique. "A ideia é que essas organizações peguem só os pontos prioritários para que possamos batalhar juntos", acrescenta. A redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais, a mudança dos índices de produtividade rural e a destinação de 50% do fundo social do pré-sal para a educação são pontos de convergência na pauta de CUT, CTB, MST e UNE e segundo seus representantes, seguramente farão parte da agenda.

Até o momento, as entidades aguardam para saber como será o relacionamento com o novo governo. De certo, deve ficar a cargo de Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, a tarefa de intermediar o contato, cumprindo a função que foi de Luiz Dulci durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Diálogo
Os presidentes de CUT, CTB, MST e UNE concordam que o relacionamento com o governo melhorou muito nos últimos oito anos, mas cobram que Dilma dê o próximo passo: "Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), nós nunca fomos nem recebidos pelo presidente. Isso melhorou radicalmente com Lula. Mas agora, queremos influenciar na política, na tomada de decisões, assim como os empresários e outros personagens da sociedade", afirma Artur Henrique.

O presidente da CTB, Wagner Gomes, completa, pautando a necessidade de mais diálogo acerca de questões como a valorização do salário mínimo e a política macroeconômica: “precisamos de uma interlocução maior com o novo governo. São duas decisões [aumento da taxa Selic e manutenção do mínimo em R$ 540] que vão na contramão daquilo que o país precisa, algo que não contribuirá em nada para o desenvolvimento do país”, argumenta Wagner Gomes.

Apesar da postura crítica, o presidente da CTB acredita que Dilma Rousseff manterá o mesmo olhar voltado para o social que o presidente Lula. “É inegável que grande parte do sucesso do governo passado se deve à política de valorização do salário mínimo, um grande instrumento de distribuição de renda. Não podemos ver o país se desenvolver a altas taxas de crescimento sem que isso se reverta para a sociedade, especialmente para os assalariados”, destaca, ao lembrar que é preciso gerar mais emprego e renda através de medidas que promovam o desenvolvimento e o bem-estar social.

Para José Batista de Oliveira, da coordenação nacional do MST, "houve muito diálogo, mas pouca efetividade". Batista cita como maior avanço do governo Lula na relação com os sem-terra a assimilação da produção do grupo com garantia de preço. "No entanto, a implantação de escolas nos assentamentos, uma prioridade, ainda não ocorreu. Mas melhorou muito o relacionamento. Nosso acesso hoje é bom até no Ministério da Agricultura", observa. Augusto Chagas, presidente da UNE, afirma que o ex-presidente recebeu a UNE "pelo menos quatro vezes por ano, durante os dois mandatos".

As decisões de cunho econômico também são alvo das organizações, que pleiteiam participação na efetivação de propostas de campanha, como a desoneração da folha de pagamentos: "Queremos saber qual será a contrapartida para o trabalhador", diz Artur Henrique. Para os sindicalistas, a valorização do salário mínimo, por eles defendida, foi fator essencial para o enfrentamento da crise econômica mundial, em 2008, o que lhes daria gabarito para ter maior influência na tomada de decisões.

Agendas previstas
As centrais prometem ocupar o Congresso Nacional a partir de fevereiro, com a reabertura dos trabalhos das Casas Legislativas, caso não haja acordo nas negociações com o governo federal acerca do valor do salário mínimo.

Em março, a UNE prepara uma série de passeatas, em todas as capitais, com vistas de pressionar o Congresso Nacional a incluir no Plano Nacional de Educação (PNE), a ser votado neste ano, o investimento obrigatório de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) anual do país na educação: "Hoje, menos de 40% dos jovens entre 18 e 24 anos concluem o ensino médio. Para um país que quer ser desenvolvido, estamos desperdiçando um potencial imenso", observa Chagas.

O MST já está realizando ocupações, sobretudo em São Paulo, pautando a urgência da Reforma Agrária.

Além das agendas próprias, que prometem grandes mobilizações, as quatro entidades se reúnem com outras organizações na próxima quarta-feira (26), em reunião da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) que debaterá as agendas conjuntas de 2011 e a participação do movimento social brasileiro no próximo Fórum Social Mundial, que ocorre de 6 a 11 de fevereiro em Dacar (Senegal). O objetivo da articulação na CMS é fortalecer a pressão nas ruas para garantir as bandeiras que unificam a luta dos movimentos sociais no país.

Com informações de Valor Econômico

25 de jan. de 2011

Reforma Agrária: prioridade máxima

Reproduzo abaixo o excelente artigo da Comissão Pastoral da Terra.

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2010, o pior ano para a Reforma Agrária no governo Lula

Comissão Pastoral da Terra, Correio da Cidadania, 20 janeiro 2011

Ao fim de mais um ano, que representa o encerramento de dois mandatos do presidente Lula, os desafios e impasses históricos da Reforma Agrária no Brasil não foram superados. Em 2010, vimos a redução de 44% do número de famílias assentadas com relação ao ano passado, além da redução de 72% no número de hectares destinados à Reforma Agrária. O Incra tornou-se ainda mais ineficaz com o seu orçamento reduzido em quase a metade em relação a 2009.

Os números deste último ano da Era Lula explicitam: a Reforma Agrária não foi uma prioridade para o governo federal. A Reforma Agrária que deveria ser assimilada enquanto um projeto de nação e de desenvolvimento sustentável transformou-se em um precário programa de assentamentos, em nível bastante aquém das reais demandas dos homens e mulheres do campo.

Balanço da Reforma Agrária 2010
2010, que encerra a chamada Era Lula, foi o pior ano para a Reforma Agrária brasileira dentre os últimos oito. A realidade é que a promessa do presidente Lula de fazer a Reforma Agrária com uma canetada não foi cumprida.

A situação dos camponeses e trabalhadores rurais é bastante grave! O campo exige mudanças a favor da cidadania, do desenvolvimento sustentável, contra a concentração de terra e contra o fortalecimento do já poderoso agronegócio brasileiro!

Em 2010, houve uma redução das famílias assentadas em 44% com relação ao ano passado, o qual já foi bastante insuficiente diante das promessas e dos deveres de um governo de fazer a Reforma Agrária e, sobretudo, diante das necessidades das famílias camponesas.

Também ocorreu neste ano uma drástica redução de 72% no número de hectares destinados à Reforma Agrária, conforme os números divulgados pelo próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Não é exagero afirmar que em 2010 houve uma intensa estagnação no processo de Reforma Agrária em todo o país.

De fato, o orçamento do Incra foi reduzido em quase a metade em relação ao ano passado. Esse profundo corte dos recursos confirma que a Reforma Agrária não foi uma prioridade para o Governo Federal. O quadro se agravou ainda mais porque além do corte o orçamento destinado para a Reforma Agrária neste ano se encerrou no mês de junho e o governo nada fez para evitar que o Congresso Nacional vetasse a suplementação orçamentária. O dinheiro que já era pouco faltou por quase um semestre.

A Reforma Agrária, como um conjunto de medidas estratégicas para enfrentar a concentração da propriedade da terra e para promover um desenvolvimento sustentável e igualitário no campo, transformou-se em um precário programa de assentamentos, em nível bastante aquém das próprias promessas do II Plano Nacional de Reforma Agrária.

É lamentável que o governo Lula, nestes oito anos, tenha relegado esta pauta à periferia das políticas públicas e tenha consumado uma surpreendente opção preferencial pelo agronegócio e pelo latifúndio.

A histórica disputa no Brasil entre dois projetos para o campo brasileiro está sendo desequilibrada em favor dos poderosos de sempre. De um lado, se favorece com recursos públicos abundantes o agronegócio agroexportador e destruidor do planeta. De outro lado, praticamente se relega a um plano inferior a agricultura familiar e camponesa que é responsável pela produção dos alimentos, do abastecimento do mercado interno e pelo emprego de mais de 85% da mão-de-obra do campo, segundo o último Censo agropecuário de 2006.

Com a expansão do setor sucroalcooleiro e maior investimento governamental para a produção de etanol, os números de trabalhadores encontrados em situação de escravidão subiram significativamente. Na era FHC, cerca de cinco mil trabalhadores e trabalhadoras foram libertados do trabalho escravo no campo. Na Era Lula esse número sobe drasticamente para 32 mil. Atribuímos este aumento a uma maior atuação do Grupo Móvel de combate ao Trabalho Escravo, pressionados por uma maior mobilização social em torno do tema, criações de campanhas, denúncias nacionais e internacionais (OIT), visibilidade na imprensa, a criação da lista suja, além de outros mecanismos jurídicos como a alteração da definição penal do crime de Trabalho Escravo (TE), no art. 149.

No caso dos territórios quilombolas a situação é a mesma. Com efeito, não houve vontade política em demarcar os territórios quilombolas, além de o Incra não dispor de pessoal capacitado e de estrutura para promover o procedimento de titulação e de elaboração de relatórios técnicos, mantendo-se inerte diante dessa dívida histórica com o povo dos quilombos, remanescente ainda sofrido da odiosa escravidão.

Como resultado disso, são insignificantes os dados divulgados pelo Instituto, que revelam que o governo Lula chega ao seu último ano emitindo apenas 11 títulos às comunidades quilombolas. Número bastante irrisório diante da demanda de mais de 3.000 comunidades em 24 estados brasileiros.

Também nessa questão, o agronegócio tem exercido pressões contrárias à titulação das terras e, infelizmente, o governo tem sido mais sensível a essas pressões e interesses do que ao seu dever maior de fazer justiça às comunidades quilombolas. Setores políticos ligados ao agronegócio articularam uma instrução normativa que não mais respeita o direito de auto-identificação, conforme preconiza a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Decreto 4887/03.

A postura do governo federal foi ainda mais lamentável quando a Casa Civil passou a reter todos os processos de regularização territorial dessas comunidades, embora o Supremo Tribunal Federal tenha negado o pedido liminar do DEM na ADIN que pretende julgar inconstitucional o decreto que regulamenta a matéria.

Na Reforma Agrária, como nos remanescentes dos quilombos, lamentavelmente, o governo Lula manteve o passivo de conflitos de terra recebido do governo anterior. A atual política econômica é uma aliada das empresas transnacionais, mineradoras e do agronegócio e, assim, penaliza cada vez mais a agricultura familiar e camponesa.

Embora as ocupações de terra tenham diminuído em alguns Estados nos últimos anos, em especial em 2010, o número de famílias envolvidas na luta pela terra na Era Lula não é tão distante do da Era FHC (570 mil famílias, 3.880 ocupações). Os dados do governo Lula, relativos aos dois mandatos, ainda não foram fechados, mas estimativas indicam a participação de cerca de 480 mil famílias em 3.621 ocupações de terra ao longo desse período (dados do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Projetos de Reforma Agrária - NERA).

No Sertão Nordestino também são visíveis os efeitos perversos desse abandono de prioridade das políticas públicas. Tem se intensificado o crescimento do agronegócio e da mineração, com o decisivo apoio dos governos federal e estaduais, através de ações e de recursos públicos. É o que vem ocorrendo na região do Vale do Açu e na Chapada do Apodi, no Rio Grande do Norte, no alto sertão paraibano e no sertão pernambucano.

Todos são projetos de mineração, de fruticultura irrigada, com uso intensivo de agrotóxicos, com a degradação do meio ambiente e, sobretudo, com a irrigação custeada por recursos públicos para atender prioritariamente às grandes empresas e não aos pequenos produtores.

Em todos esses grandes projetos, os resultados imediatos na geração de empregos e de investimentos mascaram um futuro nada sustentável, com a geração de danos à saúde das pessoas e ao meio ambiente, bem como com a intensificação da concentração de renda e de terras, com graves impactos nas populações tradicionais.

Com esses moldes e parâmetros, o projeto de transposição das águas do Rio São Francisco, que o governo tanto divulga e festeja, é mais um projeto que só vai beneficiar o agro-hidronegócio e que trará impactos negativos para as comunidades tradicionais, como os indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Na região de Curumataú e Seridó, na Paraíba, a exploração das atividades de mineração só fez aumentar a grilagem de terras e a expulsão das famílias que há décadas moram e plantam na área.

Na Zona da Mata pernambucana, o governo federal não questionou o domínio territorial do decadente agronegócio canavieiro. Nem a tragédia ambiental, com a inundação de dezenas de cidades em Alagoas e Pernambuco, em decorrência da devastação provocada pela cana de açúcar, sensibilizou os governos federal e estaduais.

Embora o IBAMA tenha ajuizado ações civis públicas para obrigar as Usinas de Açúcar e Álcool de Pernambuco a repor os seus passivos ambientais, a forte pressão do setor e o apoio do Ministério Público Federal fez com que houvesse uma trégua da Justiça para com essas empresas seculares, enquanto a população mais pobre perdia tudo que tinha na devastadora enchente de 2010.

Diante desses fatos, a reconstrução das cidades está se dando em áreas desapropriadas das Usinas, sem que qualquer medida preventiva ou estrutural de recomposição da Mata Atlântica destruída tenha sido tomada.

No que se refere à aquisição de terras por estrangeiros, o governo federal perdeu o controle que existiu de 1971 até 1994 e deu continuidade à política de FHC, com a permissão de compras de extensas áreas de terras por empresas estrangeiras ou brasileiras controladas por estrangeiros.

Apenas em 2010, a Advocacia Geral da União reviu seu parecer e passou a entender que a venda de terras brasileiras a estrangeiros ou empresas brasileiras controladas por estrangeiros estaria limitada ao máximo de cinco mil hectares, cuja soma das áreas rurais controladas por esses grupos não poderia ultrapassar 25% da superfície do município.

A decisão veio tardia e foi ineficaz, além de consolidar todas as aquisições anteriormente realizadas, configurando-se uma medida de extrema gravidade e atentatória à soberania nacional, ao manter sob domínio estrangeiro áreas próximas às fronteiras e na região amazônica.

Assim, no governo Lula, pouco há a comemorar em favor da agricultura camponesa. Mas temos o dever de registrar essas exceções para estimular a sua multiplicação. Por exemplo, o Programa Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF) e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) foram transformados em políticas públicas permanentes, através de decretos assinados por Lula.

Um outro fato positivo foi a reestruturação da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que praticamente não existia e que virou um instrumento importante para a comercialização da agricultura familiar e camponesa.

Também é merecedor de reconhecimento que o governo federal tenha deixado de ser um agente ativo na criminalização de trabalhadores sem terras, de suas lideranças e de seus movimentos. O que dificultou os esforços do agronegócio junto à Justiça, um poder que pouco tem melhorado nesses anos, no trato das questões agrárias e no reconhecimento dos direitos de cidadãos humildes e explorados.

Diante da existência dessas poucas ações importantes e positivas, em contraste com a abundância do mau desempenho do governo Lula na Reforma Agrária, o próximo governo tem que ter um posicionamento firme, com ações concretas, nas questões estratégicas da Reforma Agrária, tais como:

1) assumir efetivamente a vontade política de realizar a reforma agrária e de defender a agricultura familiar e camponesa;

2) ter um orçamento compatível e do tamanho das demandas, da dignidade e dos direitos do povo do campo;

3) propor um modelo que priorize a soberania alimentar baseado na produção camponesa;

4) limitar o tamanho da propriedade da terra;

5) assegurar a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001 PEC que prevê o confisco de terras de escravagistas;

6) garantir a demarcação das terras indígenas e quilombolas;

7) promover a aferição da função social da terra pelos vários pontos fixados pela Constituição Federal;

8) atualizar, enfim, os índices de produtividade.

No Brasil, não poderá haver desenvolvimento alternativo, democrático e sustentável sem uma reforma agrária intensa e extensa. Atualmente, todo o mundo se volta para as questões do meio ambiente e à necessidade de salvar o planeta. A reforma agrária e a agricultura familiar e camponesa são partes essenciais desse esforço inadiável para se alcançar a sustentabilidade desejada na agricultura, na produção de alimentos e nos modelos produtivos. Igualmente nessa parte, o governo Lula beneficiou o latifúndio no debate, na formatação e na tramitação do projeto do novo Código Florestal.

O período que agora se encerrou com o final do segundo mandato do presidente Lula produziu resultados evidentes na formação de consumidores, mas não na formação de cidadãos. Os desafios são imensos para que a migração que ocorreu entre as classes sociais não seja meramente provisória. Na verdade, o fato positivo de poder consumir é apenas uma parte da cidadania, a qual somente se estabiliza com o acesso ao conhecimento, à educação, a terra, às condições de nela produzir, dentre outros atributos que o governo Lula não soube, nem quis, assegurar ao povo do campo.

Assim, diante das demandas da reforma agrária e da agricultura familiar e camponesa, é imensa a missão da presidenta da República recentemente eleita. Com o apoio da maioria do Congresso Nacional, a futura presidenta efetivamente terá, nesses campos estratégicos, a missão de fazer a Reforma Agrária que nunca foi feita no Brasil.

15 de jan. de 2011

A explosiva questão da reforma da terra no Brasil

Tratar seriamente da tragédia dos deslizamentos de terra no Rio implica em tratar da necessidade de reforma urbana no Brasil como solução para o problema dos assentamentos urbanos em zonas de alto risco.

Entretanto, a solução dessa questão não é tão simples quanto parece.  Há muito mais a se considerar se olharmos para outros aspéctos do problema, como a estrutura da produção e da distribuição da renda no país, a expansão das metrópoles e o esvaziamento do campo.

Em outras palavras, não se trata apenas de fazer reforma urbana;  é preciso considerar também a baixa renda da grande maioria dos atingidos por essa tragédia – razão principal pela qual ocupam (ou ocupavam) zonas de risco.  A reforma urbana em si poderia ajudar a relocá-los;  mas, não podendo atender a todas as necessidades de locação, não lhes garantiria emprego ou renda adequada.

O que se precisa, de fato, é de uma política nacional de desenvolvimento responsável, que seja a base de suporte de um planejamento integral com foco não apenas no output econômico das emprêsas mas também na distribuição da renda, na distribuição da terra – urbana e rural – de forma adequada para que, gerando oportunidades, atenda os interesses de todos e não apenas os de uma minoria.

Fala-se também em descentralização urbana como uma saída para se acalmar o crescimento desenfreado das grandes metrópoles e estimular a ocupação das cidades menores.  Entretanto, essa idéia não passa de utopia enquanto a terra não for redistribuída e os objetivos da produção nacional não forem repensados.  Isso porque as cidades não são apenas locais de moradia e centros de atividades sociais e culturais.  As cidades são essencialmente centros econômicos, postos de troca para a produção local e para as regiões produtivas que as cercam.  São as atividades produtivas das cidades e do campo que viabilizam a adequada ordenação do território.

Sem uma reforma agrária, e sem um redirecionamento da produção nacional para o atendimento das necessidades básicas do povo, não haverá produção local suficiente para estimular as trocas econômicas nas vilas e cidades menores, e as estradas continuarão a ser meros corredores de transporte para as exportações e para os emigrantes rurais e urbanos em direção aos grandes centros.

No Brasil e na América Latina, desde o início da colonização européia, a 'fazenda' é o modêlo social vigente e o 'fazendeiro' ainda é venerado como um 'deus todo-poderoso'.  Obviamente, as elites rurais, 'proprietárias' da terra, não querem mudanças.  Mas, a terra deve ser um bem-social, deve ser distribuída de acordo com as necessidades da sociedade, como acontece na grande maioria dos países hoje desenvolvidos e que, há séculos, realizaram sucessivas reformas agrárias distributivas  (por exemplo:  EEUU nos séculos XVIII e XIX;  França e Suécia no século XVIII;  Finlândia nos séculos XVIII, XIX e XX;  Irlanda nos séculos XIX e XX;  Dinamarca, Canadá e Grécia no século XIX;  Japão nos séculos XIX e XX;  China no século XX.  Ver Wikipedia).  Em uma sociedade democrática como é a nossa hoje, essa questão precisa ser examinada com atenção.  Diante de uma ampla reforma da terra no país, talvez possamos pensar essa ideologia da 'propriedade rural', do 'fazendeiro', em termos de uma estratégia de re-locação.

A tragédia do Rio está a despertar um debate fundamental que precisa ser ampliado mas que somente o será à medida em que nossa democracia se torne mais participativa, ampliando-se, e à medida em que temas fundamentais passem a ser submetidos à população para sua análise e posicionamento, o que talvez somente seja possível através da democratização da comunicação no país (vê-se, aqui, mais uma razão para promovermos tal democratização).  Há mérito em nos lembrarmos da necessidade da reforma urbana;  entretanto, ao fazê-lo, apenas nos acercamos timidamente da ainda mais complexa e explosiva questão, realmente crucial e que deve ser abordada simultaneamente:  a questão da reforma agrária.



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A tragédia das chuvas só tem uma resposta óbvia:  reforma urbana

Luana Bonone, Vermelho, 13 janeiro 2011

Mais de 480 vítimas fatais até agora. Mais de 13.500 desabrigados. Pelo menos 300 desaparecidos. Incontáveis feridos ou doentes vitimados pela tragédia. Os números, dignos de uma guerra, revelam o triste cenário que serve de sinistro alerta para a importância de políticas estruturais de planejamento urbano, saneamento básico e regularização imobiliária. Este é, até agora, o extrato numérico e político das conseqüências provocadas pelas fortes chuvas na região serrana do Rio de Janeiro.

Moradores de Teresópolis (RJ) ajudam a Defesa Civil na busca por sobreviventes. Foto:  Vanderlei Almeida/AFP

Em reação ao cenário desolador, a presidente Dilma Rousseff visitou as regiões mais devastadas, o Ministério da Saúde doará sete toneladas de remédios e o governo federal anuncia o investimento de R$ 780 milhões para combater os efeitos trágicos das chuvas.

O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, segue ritual parecido, apesar de repetir o cacoete de outros governadores e de prefeitos das regiões mais atingidas: culpou a natureza e outros políticos, tendo criticado "décadas de permissividade" com a ocupação de áreas irregulares. Disse ainda que, pela Constituição de 1988, o solo urbano é de responsabilidade das prefeituras.

Solidariedade
Entidades dos movimentos sociais organizam campanhas de doação de roupas, comida, colchões, remédio e até sangue. O PCdoB Petrópolis criou o núcleo "PCdoB Solidário", que ajudará as vítimas das tragédias da região serrana do Rio de Janeiro. O partido local estuda ainda a possibilidade de montar uma tenda no centro da cidade e divulga lugares em Petrópolis que já estão recebendo doações: Bauhaus, no Parque de Exposição de Itaipava, Estácio de Sá, Bikers Lounge, CEAC no Valparaíso.

A necessidade maior é de água potável. A reclamação comum é quanto ao “descaso das autoridades locais” e a cobrança é acertadíssima: “é hora de enfrentar com coragem a questão das ocupações irregulares, independentemente de serem habitadas por ricos ou pobres”.

A solidariedade vem também de fora. O internacionalismo proletário se fez presente por meio de uma nota da Federação Sindical Mundial, organização à qual a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) é filiada.

A juventude, que participará de eventos da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) na próxima semana na cidade do Rio de Janeiro, estuda colocar tendas para recolhimento de doações em suas atividades.

O Brasil está mobilizado por força da solidariedade, como esteve em todas as enchentes anteriores. O ritual é repetido ano a ano, em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em outras capitais, além de cidades no interior dos respectivos estados. Todo verão os noticiários são inundados de números informando o tamanho da tragédia causada pelas chuvas.

Ocorre que a cada ano a tragédia é maior, os investimentos emergenciais são maiores, e as políticas de prevenção não parecem crescer na mesma proporção.

A presidente Dilma e o governador Sérgio Cabral visitaram as áreas mais devastadas pelas chuvas no estado do Rio de Janeiro. Foto: Roberto Stuckert Filho / PR

Soluções estruturais
É preciso travar o combate às tragédias causadas pelas condições climáticas e pela imprudência imobiliária. Isso exige uma postura firme e organizada dos governos federal, estaduais e municipais, agindo de forma integrada e em diálogo com a comunidade.

Pois, ao contrário disso, as notícias mais comuns após o mês de março em geral são a respeito de grandes obras para desafogar o trânsito – geralmente aumentando a quantidade de áreas cobertas por asfalto, o que reduz a permeabilidade do solo. Há também notícias que merecem menos destaque nos grandes veículos de comunicação, como a redução da verba para a limpeza urbana na cidade de São Paulo, ou os constantes despejos sem alternativa de moradia às famílias desalojadas, resultando em situações como o acampamento recentemente realizado por famílias despejadas em frente à Câmara Municipal de São Paulo. No Rio de Janeiro, os movimentos de luta pela moradia encontram cenário semelhante.

Urge a implementação de políticas de reforma urbana que utilizem imóveis em locais habitáveis das cidades para fins de moradia, políticas de desassoreamento de rios e limpeza de canais, políticas de limpeza urbana que valorizem a reciclagem e a reutilização, políticas de regularização imobiliária que impeçam a construção de moradias em locais inapropriados – e que ofereçam alternativas à população que ainda não tem acesso ao sonho da casa própria. É urgente uma união de esforços que vá além da solidariedade imediata pós-tragédia, que não se limite a ações imediatas e “firmes”, como acertadamente prometeu a presidente Dilma, mas que consiga implementar soluções estruturais.

Tão urgente quanto socorrer as vítimas diretas da tragédia da vez, é estabelecer políticas e investimentos de médio e longo prazo que dêem conta de responder à altura os desafios que o crescimento das cidades apresenta ao desenvolvimento do país. Pois a tragédia das chuvas no Rio de Janeiro e em São Paulo só tem uma resposta óbvia, embora nada simples: reforma urbana.

Com informações de agências

13 de jan. de 2011

Previsões sobre a economia mundial

O autor do artigo anexo abaixo, Walden Bello, é professor de sociologia na Universidade das Filipinas, fundador e analista senior da ONG Focus on the Global South, membro do Transnational Institute de Amsterdam, e presidente da ONG Freedom from Debt Coalition.  Ele é conhecido por acadêmicos e militantes de esquerda por sua posição crítica ao modêlo corrente de globalização econômica.

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Perspectivas da economia mundial em 2011

O que alguns analistas chamam de regresso da China a um padrão de crescimento orientado à exportação se chocará com os esforços dos EUA e da Europa para impulsionar a recuperação mediante um crescimento orientado à exportação simultaneamente com a adoção de barreiras à entrada de importações asiáticas.  O resultado mais provável dessa volátil mistura de estímulo à exportação e proteção interna por parte dos três setores que encabeçam a economia mundial não será expansão global, mas sim deflação global.  O humor dominante nos círculos econômicos liberais no final de 2010 é sombrio, para não dizer apocalíptico.  O artigo é de Walden Bello.

Walden Bello, tradução de Marco Aurélio Weissheimer, Sin Permiso/Carta Maior, 3 janeiro 2011

Em contraste com suas previsões otimistas, no final de 2009, de uma recuperação sustentada, o humor dominante nos círculos econômicos liberais no final de 2010 é sombrio, para não dizer apocalíptico.  Os falcões fiscais ganharam a batalha política nos EUA e na Europa, para alarme dos defensores do gasto público, como o prêmio Nobel Paul Krugman e o colunista do Financial Times, Martin Wolf, que consideram as restrições orçamentárias como a receita mais segura para matar a incipiente recuperação nas economias centrais.

Mas ainda que os EUA e a Europa pareçam presos a uma crise mais profunda no curto prazo e à estagnação no longo prazo, alguns analistas falam de um “desacoplamento” do Leste Asiático e de outras áreas em desenvolvimento em relação às economias ocidentais.  Essa tendência se iniciou em 2009 na esteira do programa de estímulos massivos da China, que não só reestabeleceu o crescimento chinês de dois dígitos, como tirou da recessão e levou à recuperação várias economias vizinhas, desde Singapura até a Coréia do Sul.  Em 2010, a produção industrial asiática recuperou a sua tendência histórica, “quase como se a Grande Recessão nunca tivesse ocorrido”, segundo The Economist.

Será que a Ásia está seguindo realmente um caminho separado da Europa e dos Estados Unidos? Será que estamos realmente assistindo a um desacoplamento?

O triunfo da austeridade
Nas economias centrais, a indignação com os excessos das instituições financeiras que precipitaram a crise econômica deram lugar à preocupação com os déficits públicos massivos em que os governos incorreram para poder estabilizar o sistema financeiro, frear o colapso da economia real e enfrentar o desemprego.  Nos Estados Unidos, o déficit se situa acima de 9% do PIB.  Não é um déficit descontrolado, mas a direita norteamericana conseguiu a façanha de que o medo do déficit e da dívida federal pesasse mais no espírito da opinião pública do que o medo do aprofundamento da estagnação e do aumento do desemprego.  Na Inglaterra e nos EUA, os conservadores fiscais conseguiram um mandato eleitoral claro em 2010, enquanto que, na Europa Continental, uma Alemanha retornando ao crescimento anunciou ao resto da eurozona que não seguiria subsidiando os déficits dos membros mais fracos das economias meridionais ou periféricas, como Grécia, Irlanda, Espanha e Portugal.

Nos EUA, a lógica da razão deu lugar à lógica da ideologia.  O impecável argumento dos Democratas de que o gasto público em estímulos à economia era necessário para salvar e criar postos de trabalho não conseguiu resistir ao assalto da tórrida mensagem Republicana, segundo a qual um maior estímulo público, acrescido dos 787 bilhões de dólares do pacote de Obama em 2009, significaria um passo mais na direção do “socialismo” e da “perda da liberdade individual”.  Na Europa, os keynesianos argumentaram que o relaxamento fiscal não só ajudaria a Irlanda e as economias meridionais com problemas, como também a poderosa maquinaria econômica alemã, pois essas economias absorvem as exportações da Alemanha.  Do mesmo modo que nos EUA, os argumentos racionais sucumbiram às imagens sensacionalistas, neste caso ao retrato midiático de uns esforçados alemães subsidiando hedonistas mediterrâneos e esbanjadores irlandeses.  A contragosto, a Alemanha aprovou pacotes de resgate para a Grécia e a Irlanda, mas só sob a condição de que gregos e irlandeses fossem submetidos a selvagens programas de austeridade, descritos por nada menos que dois ex-ministros alemães no Financial Times como medidas antissociais “sem precedente na história moderna”.

O desacoplamento ressuscitado
O triunfo da austeridade nos EUA e na Europa, sem dúvida alguma, eliminará essas duas áreas como motores para a recuperação econômica global.  Mas será que a Ásia encontra-se em um caminho diferente?  Será que ela pode suportar, como Sísifo, o peso do crescimento global?

A idéia de que o futuro econômico da Ásia se desacoplou do das economias do centro não é nova.  Esteve na moda antes da crise financeira derrubar a economia norteamericana em 2007-2008.  Mas se revelou ilusória quando a recessão atingiu os EUA, país do qual a China e outras economias do Leste Asiático dependiam para absorver seus excedentes.  Entre fins de 2008 e início de 2009, a Ásia foi atingida repentina e drasticamente.  São desse período as imagens televisivas de milhões de trabalhadores chineses migrantes abandonando as zonas econômicas costeiras e regressando para o campo.

Para enfrentar a contração econômica, a China, tomada de pânico, lançou o que Charles Dumas, autor de Globalisation Fractures, caracterizou como um “violento estímulo interior” de 4 bilhões de yuanes (580 bilhões de dólares).  Isso significava cerca de 13% do PIB em 2008 e constituiu “provavelmente o maior programa da história deste tipo, incluídos os anos de guerras”.  O estímulo não só restituiu o crescimento de dois dígitos; também transmitiu às economias do Leste asiático um impulso recuperador, enquanto Europa e os EUA caíam na estagnação.  Essa notável inversão é o que levou ao renascimento da idéia do desacoplamento.

O governante Partido Comunista da China reforçou essa idéia ao sustentar que se produziu uma mudança de política que prioriza o consumo interno em relação ao consumo orientado para a exportação.  Mas se observamos o quadro com mais atenção, vemos que isso é mais retórica que qualquer outra coisa.  Com efeito, o crescimento orientado para a exportação segue sendo o eixo estratégico, algo que é sublinhado pela continuada negativa chinesa de valorizar o yuan, uma política destinada a manter competitivas suas exportações.  A fase de incentivo do consumo interno parece ter acabado e a China fala agora, como observa Dumas, “em processo de mudança massivo, desde o estímulo benéfico da demanda interior até algo muito parecido ao modelo de 2005-2007:  crescimento orientado para a exportação com um pouco de reaquecimento.

Não só analistas ocidentais como Dumas tem chamado a atenção sobre esse regresso ao crescimento orientado para a exportação.  Yu Yongding, um influente tecnocrata que trabalhou como membro do comitê monetário do Banco Central chinês, confirma que, de fato, se voltou à prática econômica habitual:  “Na China, com razões comércio/PIB e exportações/PIB que excedem já, respectivamente, 60% e 30%, a economia não pode seguir dependendo da demanda externa para sustentar o crescimento.  Desgraçadamente, com um enorme setor exportador que emprega milhões e milhões de trabalhadores, essa dependência se tornou estrutural.  Isso significa que reduzir a dependência e o excedente comercial da China passa por saturar mais do que por ajustar a política macroeconômica.

O regresso ao crescimento orientado à exportação não é simplesmente um assunto de dependência estrutural.  Tem a ver com um conjunto de interesses procedentes do período da reforma, interesses que, como diz Yu, “se transformaram em interesses corporativos que lutam duramente para proteger o que têm”.  O lobby exportador, que junta empresários privados, altos executivos de empresas públicas, investidores estrangeiros e tecnocratas de Estado, é o lobby mais poderoso de Beijing neste momento.  Se a justificativa oferecida para o estímulo público foi derrotada pela ideologia nos EUA, na China a argumentação igualmente racional em defesa do crescimento centrado no mercado interno foi aniquilada por interesses materiais setoriais.

Deflação global
O que os analistas como Dumas chamam de regresso da China ao tipo de crescimento orientado à exportação se chocará com os esforços dos EUA e da Europa para impulsionar a recuperação mediante um crescimento orientado à exportação simultaneamente com a adoção de barreiras à entrada de importações asiáticas.  O resultado mais provável da promoção competitiva dessa volátil mistura de estímulo à exportação e proteção interna por parte dos três setores que encabeçam a economia mundial em uma época de comércio mundial relativamente menos próspera não será expansão global, mas sim deflação global.  Como escreveu Jeffrey Garten, antigo subsecretário de Comércio no governo Bill Clinton:

Ainda que se tenha prestado muita atenção à demanda de consumo e industrial nos EUA e na China, as políticas deflacionárias que envolvem a União Européia, a maior unidade econômica do mundo, poderiam afetar negativamente o crescimento econômico global.  As dificuldades de levar a Europa a redobrar seu desempenho nas exportações ao mesmo tempo em que EUA, Ásia e América Latina estão posicionando suas economias para vender mais em todo o mundo, não poderia senão exacerbar as tensões, já suficientemente altas, nos mercados de divisas.  Poderia levar a um ressurgimento das políticas industriais patrocinadas pelos estados, cujo crescimento já pode ser observado em todas as partes.  Tomados em conjunto, todos esses fatores poderiam propagar o incêndio protecionista tão temido por todos.

A crise da Velha Ordem
O que nos aguarda em 2011 e nos próximos anos, adverte Garten, são momentos de “turbulência excepcional, à medida em que o ocaso da ordem econômica global tal como a conhecemos avança de modo caótico e, talvez, destrutivamente”.  Garten destila um pessimismo que está tomando conta cada vez mais de boa parte da elite global que outrora anunciava a boa nova da globalização e que agora a vê desintegrar-se literalmente ante seus próprios olhos.  E esta ansiedade fin de siècle não é monopólio dos ocidentais.  Ela é compartilhada pelo influente tecnocrata chinês Yu Yongding, que sustenta que o “impulso do crescimento chinês praticamente esgotou seu potencial”.  A China, economia que conseguiu cavalgar a onda globalizadora com maior êxito, “chegou a uma disjuntiva crucial: se não implementar penosíssimos ajustes estruturais, poderá perder subitamente a força de seu crescimento econômico.  O rápido crescimento econômico foi obtido a um custo extremamente alto.  Só as próximas gerações conhecerão o verdadeiro preço a ser pago”.

A esquerda na presente conjuntura
Diferentemente das medrosas apreensões de figuras do establishment como Garten e Yu, muitas pessoas da esquerda vêm a turbulência e o conflito como a necessária companhia do nascimento de uma nova ordem.  E, com efeito, os trabalhadores estão se mobilizando na China e já obtiveram aumentos salariais significativos com greves organizadas em empresas estrangeiras ao longo de 2010.  Os protestos também eclodiram na Irlanda, Grécia, França, Portugal e Grã Bretanha.  Mas, ao contrário da China, na Europa os trabalhadores estão marchando para recuperar direitos perdidos.  O certo é que, nem na China, nem no Ocidente, nem em parte alguma são os trabalhadores portadores de uma visão alternativa à ordem capitalista global.  Ao menos não ainda.