16 de dez. de 2010

Os Crimes da Ditadura

Muitos jovens ouviram falar da ditadura, de seus crimes e repressão, mas não fazem nem uma idéia do que esse período tão recente da história brasileira e latino-americana representa.  Os dois artigos abaixo talvez tragam algum esclarecimento.

O primeiro artigo, A Condenação do Brasil na OEA, deixa evidente que há muitos militares, ainda ativos ou já na reserva, com medo de terem que responder pelos crimes que cometeram.  O artigo também destaca o fato de que está havendo algum progresso na luta para que a justiça seja feita.  Isso talvez seja um aviso para aqueles militares que, hoje, possam ainda estar pensando em barrar as mudanças a favor da maioria (e contra os interesses da elite mesquinha) que o processo democrático está propiciando.

Recomendo também a leitura do segundo artigo, entitulado A Volta do Pêndulo.  Nesse artigo, ao qual adicionei meus comentários, um curto apanhado é feito sobre o que ocorreu em diversos países latino-americanos naquele doloroso período da nossa história.  Esse resumo nos mostra claramente que os países latino-americanos precisam se aliar em defesa de seu interesse comum:  a defesa da sua soberania.

[NOTA:  estes artigos apresentam algumas revisões e comentários feitos por mim (em verde).]

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A Condenação do Brasil na OEA

Laerte Braga *, ADITAL, 15 dezembro 2010

A maior parte da população do Brasil não tem conhecimento das atrocidades cometidas por militares e todo o aparato de repressão (polícias civis e militares nos respectivos estados) durante o período da ditadura militar.

São poucos os que conhecem ou têm ciência da Operação Condor:  junção dos serviços repressivos dos países do chamado Cone Sul (Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile) para a prática de prisões, assassinatos de lideranças de oposição, marcada por forte presença de agentes norte-americanos.

Países como Argentina e Chile, notadamente o primeiro, têm se destacado na apuração dos crimes cometidos por militares e agentes da repressão durante o período ditatorial.

No Brasil, por uma lei canhestra e contrária aos acordos internacionais de direitos humanos, os criminosos permanecem impunes.  A anistia, que aparentemente permitiu a volta de exilados e a libertação dos presos condenados por crime de "subversão", na prática eximiu os militares de qualquer culpa em crimes de tortura, assassinato, estupro, toda a barbárie que caracterizou o regime militar.

A Corte Internacional de Direitos Humanos da OEA – Organização dos Estados Americanos – condenou a repressão e os crimes cometidos pelo regime militar brasileiro durante a guerrilha do Araguaia.  A sentença foi trazida a público na terça-feira, 14 de dezembro, e responsabiliza o Estado brasileiro pelo desaparecimento de sessenta e duas pessoas entre os anos de 1972 e 1974.

É a primeira vez que o Brasil é condenado por crimes contra os direitos humanos praticados à época da ditadura militar (1964/1985).  A decisão da Corte terá que ser respaldada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).  Este ano, o assunto chegou a ser discutido entre os ministros daquele tribunal sem que se tenha chegado a um acordo sobre a obrigação de acatar uma sentença de corte internacional, mesmo sendo o Brasil integrante da OEA e signatário de tratados de direitos humanos.

A sentença condenando o Estado brasileiro foi divulgada pelo juiz Roberto de Figueiredo Caldas.  No teor da decisão, está dito que a Lei de Anistia, assinada em 1979, é um obstáculo à punição de torturadores e funciona como álibi para esses criminosos, já que a Constituição brasileira não deixa portas abertas para esse tipo de punição.

Todo esse cerco jurídico para garantir torturadores resultou e resulta de pressões de militares ainda fortes, acentuadas nos dias atuais.

A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos afirma que o Brasil, na condição de signatário do Pacto de San José da Costa Rica, deveria respeitar as normas da própria Corte e adequar a carta magna do país aos princípios estabelecidos naquele acordo.

"Os dispositivos da Lei de Anistia são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeito jurídico, e não podem continuar representando um obstáculo para a investigação dos fatos".  É uma parte do texto da sentença.

Um outro ponto da sentença diz respeito "à violação de direito de acesso à informação, estabelecido no artigo 13 da Convenção Americana", já que o governo brasileiro se negou a divulgar e liberar o acesso aos arquivos em poder do Estado com informação sobre os crimes cometidos por militares durante a ditadura militar.

A sentença obriga o Brasil a reconhecer o crime de desaparecimento forçado de pessoas e estabelece que os culpados devem ser punidos.

As dificuldades para o reconhecimento da sentença se prendem ainda a reação de militares brasileiros, [contrários] a qualquer atitude que possa ameaçar torturadores fardados.  É recente a quase rebelião de militares das três armas ao Plano Nacional de Direitos Humanos proposto pelo governo do presidente Lula.

Segundo o governo brasileiro, o que se constrói aqui é uma "reconciliação pacífica".  Essa, no entanto, é uma afirmação que difere do entendimento do presidente da República e tenta evitar atrito com os militares.

Se reconhecida a sentença, pela primeira vez na história militares brasileiros terão que estudar direitos humanos nos seus cursos de formação;  isso, certamente, vai embaralhar a cabeça da turma à hora das marchas.

As forças armadas brasileiras, desde o grande expurgo promovido a partir de 1964 e durante o período ditatorial, pensam como força auxiliar dos Estados Unidos.  A imensa e esmagadora maioria dos militares brasileiros ainda teme encontrar comunistas debaixo de suas camas.

E na cabeça dessa maioria, direitos humanos são acessórios desnecessários em função do culto ao bezerro de ouro, os EUA.

Como um gigante adormecido, os militares brasileiros são os principais parceiros das elites latifundiárias, dos interesses das grandes empresas estrangeiras no Brasil, e imaginam uma espécie de confederação com a América do Norte para nos transformar num [enfeite] cercado de bases militares contra terroristas imaginários (mas interesses econômicos visíveis), confirmando a máxima do pensador inglês Samuel Johnson [de] que  "o 'patriotismo' é o último refúgio dos canalhas".

A decisão deve repercutir nos quartéis, devem aumentar as pressões para manter impunes torturadores, estupradores, assassinos chancelados pelas forças armadas e pela ditadura militar.

[Sabe-se] da cumplicidade de muitas lideranças políticas ainda vivas e atuantes (José Sarney, presidente do Senado;  Helio Costa, senador e ex-ministro das Comunicações), da maioria da mídia privada (Globo, Folha de São Paulo, Veja, etc.), e isso acaba reforçando as dificuldades para que sejam abertos arquivos da ditadura e punidos boçais travestidos de democratas a garantir a segurança nacional (deles), a lei e a ordem (deles e dos que comandaram a ditadura:  os 'de fora').

Um detalhe que merece ser observado nesses tempos de WIKILEAKS é a constante criminalização do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).  A reforma agrária [seria] um dos mais sérios obstáculos à colonização do Brasil pelo agronegócio (controlado de fora), e ao controle de reservas minerais estratégicas e fundamentais ao País e ao seu futuro por grandes empresas privadas como a VALE.

Nos últimos dias, foi revelado que José Serra já havia acertado com empresas dos EUA a entrega do Pré-Sal  "assim que fosse eleito", confirmando as negociações feitas por FHC em Foz do Iguaçu com investidores e captadores de recursos estrangeiros.

Para além da sentença [condenando os crimes durante a ditadura], há toda uma teia envolvendo militares (maioria esmagadora) e elites políticas e econômicas de direita, confirmando o caráter apátrida dessa gente.

Mas é um avanço, um significativo avanço, numa luta que ainda não acabou.

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A Volta do Pêndulo

Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá *, ADITAL15 dezembro 2010

Talvez nunca a esquerda tenha sido tão esquerda e a direita tão direita na América Latina como agora.  E a mídia hegemônica permanece do lado em que sempre esteve.


Enganaram-se os profetas do fim da dicotomia esquerda-direita com a queda do Muro de Berlim.  [Os autores referem-se à afirmação, feita na década de 1990, quando o livro O Fim da História, de Francis Fukuyama, foi publicado, ressaltando a supremacia da ideologia capitalista tendo em vista a queda da URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.  Entretanto, as mudanças no plano econômico, em decorrência daquela queda, não têm sido tão satisfatórias quanto esperadas pelos países imperialistas.  Os países independentes ou resistentes ao controle imperialista , que antes circulavam na esfera de influência da Rússia, voltam hoje à tona, principalmente devido ao fracasso da política neo-liberal imposta naquela década de 1990.  Tais países constituem-se na esquerda internacional de hoje.  Mas, talvez ainda mais alarmante para os capitalistas seja o que ocorre na esfera nacional, isto é, dentro desses próprios países capitalistas de economia avançada:  como houve mudanças reais nas condições de vida desses povos em virtude das mudanças na esfera econômica internacional, direita e esquerda, significam, hoje, muito mais do que antes, posições de classes sociais opostas nesses países.  A mais importante mudança na esfera internacional refere-se à famosa outsourcing, ou seja, à migração das firmas, desses países para países onde existe mão-de-obra barata, a fim de aumentar seus lucros.  Isso resultou em massivo desemprêgo naqueles países, e impediu a continuada especulação na esfera financeira, como o financiamento de moradias modernas e caras, e de outras abusivas dívidas que os trabalhadores não mais conseguem pagar.  A quebra do sistema financeiro internacional foi um dos resultados dessa  'jogada' capitalista ambiciosa.]  Na Europa e [nos] EUA, afundados pela crise econômica que poderia significar a derrocada final do neoliberalismo, países antes considerados de primeiro mundo [isto é, Estados de bem-estar social (welfare states), com garantias de emprego, habitação, saúde e educação] fazem a clara opção pelo capital, financiando os bancos e investidores enquanto arrocham salários, cortam benefícios e elegem os estrangeiros [imigrantes] como inimigos da economia. [Os Estados de bem-estar social, em oposiçao aos Estados de capitalismo selvagem, surgiram como resposta ao estabelecimento da URSS e sua política socialista – de direitos humanos, com emprêgo, habitação, saúde e educação para todos.  Os países de capitalismo avançado, enriquecidos pela pilhagem imperialista, estabeleceram Estados de bem-estar social pois temiam que seus trabalhadores pressionassem pela mudança do sistema a fim de obter os mesmos benefícios que os trabalhadores soviéticos obtiveram com a Revolução Socialista de 1917.]    As consequências têm sido manifestações como na França, na Espanha e na Inglaterra, ou mesmo nações à beira do caos como a Grécia.  A bola da vez é a Irlanda, mas Portugal também está na alça de mira do "socorro" do FMI.  O receituário é bem conhecido por aqui:  redução do investimento público, aumento da idade para aposentadoria, diminuição no número de funcionários públicos, enfraquecimento do poder do Estado...  As alternativas mais à esquerda (como maior distribuição de renda, fortalecimento do mercado interno e controle de capitais) estão fora de discussão. [Em outras palavras, podemos finalmente dizer que, com a queda da URSS, vivemos em um mundo não mais dividido em dois lados – o capitalista e o socialista.  Internacionalmente, direita e esquerda não podem mais ser identificadas ideologicamente;  os países à esquerda, hoje, são aqueles que procuram sua independência econômica, sua soberania, embora estejam sendo constantemente atacados pelo imperialismo.  Na verdade, sem mais o exemplo da URSS, sem mais o exemplo dos direitos dos trabalhadores em um país socialista, a tendência é que os trabalhadores dos países imperialistas venham a perder seus direitos nos países ocidentais também, e que venham a ter os mesmos problemas que os trabalhadores dos países explorados do Terceiro Mundo:  desemprêgo, carência habitacional, falta de adequado atendimento à saúde, educação deficiente, e outros...  Trata-se, enfim, de um mundo que não está mais dividido em facções ideológicas, mas que está sendo conduzido pelas forças cegas do mercado capitalista, como disse William Greider em seu livro Um Mundo na Corda Bamba (Geração Editorial, 1998;  do inglês One World, Ready or Not (Penguin, 1998)).  Talvez tenha chegado a hora de tomarmos as rédeas da economia, e criarmos o socialismo:  um sistema planejado em escala global!]


Enquanto isso, na América Latina há um certo refluxo da onda "esquerdista" que levou ao poder presidentes como Lula, Evo Morales e Hugo Chávez.  Depois da fraude eleitoral no México, o governo ilegítimo de Felipe Calderón, do partido de direita Ação Nacional (PAN), aprofundou a política de integração econômica com os Estados Unidos levando à maior recessão da história do país (o PIB [caiu] 6,7% em 2009).  Com isso, a empresa capitalista por excelência, o comércio de drogas ilícitas, passou a movimentar estimados 45% da renda bruta anual do México.  No modelo de "guerra contra as drogas" implementado com apoio dos EUA que investiram na iniciativa US$ 1,8 bilhão desde 2008, perto de 30 mil pessoas perderam suas vidas nos últimos quatro anos, sendo que 12 prefeitos foram assassinados somente em 2010.  Com as leis trabalhistas "flexibilizadas" desde os anos 1990, os trabalhadores tem que escolher entre salários de fome com jornadas medievais ou tentar a sorte com os "coyotes" para viver como ilegais do outro lado da fronteira.  Por outro lado, Carlos Slim, o homem mais rico do mundo segundo a Forbes, que comprou do governo a Telmex em 1990 e controla Embratel e Claro no Brasil, acaba de fazer uma oferta para ter 100% da Net.  O objetivo é unir aqui e no México TV e banda larga à telefonia fixa e celular.

Em Honduras, a simples proposta de um plebiscito para reformar a constituição que, segundo alguns, poderia aproximar o país do "Socialismo do Século XXI" de Chávez, levou ao golpe que teve forte participação dos empresários locais da comunicação (uma das primeiras providências foi derrubar o sinal de veículos "não-alinhados") e apoio velado dos EUA para derrubar o presidente eleito Manuel Zelaya.  Outra questão de fundo foi a adesão do país à esquerdista Aliança Bolivariana para as Américas - Alba, que se contrapõe à Aliança Latino-Americana de Livre Comércio (Alca), impulsionada pelo governo estadunidense.  Nos 17 meses desde o golpe, Honduras segue numa permanente crise econômica, sanitária (a dengue está totalmente fora de controle) e humanitária.  A imprensa golpista tenta esconder, mas são milhares os torturados, pelo menos 140 estudantes, professores e líderes sociais e políticos foram assassinados e há centenas de exilados.  Entre os jornalistas que se opõem ao governo, dez já foram mortos desde julho de 2009.  E agora o WikiLeaks tem revelado o quanto os embaixadores estadunidenses no país se preocupavam com a aproximação entre Zelaya e Chávez e o quanto isso poderia afetar os "interesses americanos"...

Na Colômbia também não há nada de novo.  O recém-eleito presidente Juan Manuel Santos (num pleito com mais de 56% de abstenção no segundo turno e inúmeras denúncias de fraudes), é ex-ministro da Defesa de Álvaro Uribe e membro da família proprietária do principal jornal do país (o El Tiempo), da mais importante revista semanal de política e variedades (La Semana), de uma rede de rádios, um canal de TV com previsões meteorológicas e em breve um novo canal de TV aberta de abrangência nacional.  A aliança com os EUA, que estão implantando novas bases militares no país apesar da inconstitucionalidade proferida pela Suprema Corte local, segue firme no Plan Colombia, de enfrentamento exclusivamente militar do narcotráfico e das guerrilhas.  Já o partido de esquerda Polo Democrático Alternativo (PDA) denunciou no início de novembro que ao menos 50 políticos esquerdistas, sindicalistas, dirigentes sociais, camponeses, indígenas e defensores dos direitos humanos foram mortos apenas nos primeiros 90 dias de governo Santos.  A denúncia foi feita numa conferência no Equador e, claro, não ilustrou as páginas de La Semana.

Já no Chile, a coalizão de esquerda Concertación perdeu em janeiro a presidência que ocupava desde o fim da ditadura Pinochet há 20 anos.  Vários fatos concorreram para a volta da direita ao poder com a eleição do mega-empresário Sebastien Piñera.  Para começar, o conservadorismo estava reunido em torno de Piñera, enquanto os progressistas se dividiram entre o representante oficial da Concertación, o ex-presidente de pouco destaque Eduardo Frei, Jorge Arrate, que foi ministro de Frei, e Enríquez-Ominami, que também era da coalizão até 2009.  Além disso, assim como no Brasil não houve crescimento econômico no Chile em 2009, devido ao agravamento da crise nos EUA e Europa, levando a uma queda na popularidade da ex-presidente socialista Michelle Bachelet.  Também ajuda bastante o fato de Piñera, irmão de um ex-ministro do trabalho do ditador Augusto Pinochet, ser o dono de um dos principais canais de TV do país, a Chilevisión.  Não é a toa que ele ficou tão à vontade em frente às câmaras durante todo o resgate dos 33 mineiros soterrados por meses devido à falta de segurança geral nas centenas de minas de cobre chilenas.

Nos países que têm mantido a opção pela esquerda nas urnas, as tentativas de golpes e desestabilização pela direita e pela mídia hegemônica continuam.  Depois do golpe civil-militar-midiático de menos de 48 horas em 2002 na Venezuela, tão bem representado no documentário "A revolução não será televisionada", dos irlandeses Kim Bartley e Donnacha O'Briain, ocorreram outras situações graves no continente.  Na Bolívia em 2006, o envio do embaixador estadunidense Philip Goldberg (que já havia trabalhado "coincidentemente" na Bósnia durante a guerra civil que desmembrou a antiga Iugoslávia e depois no Kosovo no período em que a província se separou da Sérvia) seria um forte indicativo da estratégia encampada pelos meios de comunicação do país andino de separação das províncias da chamada Meia Lua, as mais ricas da nação.  A idéia, que contava com programas eleitorais de TV produzidos nos EUA e pesquisas fajutas, pretendia primeiro tentar revogar nas urnas a constituição bolivariana de Evo Morales em seu início de governo.  Se não desse certo, era sempre possível tentar impulsionar uma guerra civil [e] pedir a intervenção de tropas de paz da ONU, como aconteceu no Haiti.

Em setembro desse ano, foi a vez de Rafael Correa, presidente duas vezes eleito no Equador e responsável por uma estabilidade política rara no país, enfrentar nas ruas policiais e militares amotinados.  Ele chegou a ser atingido por uma bomba de gás lacrimogêneo e rasgar a camisa para mostrar o peito nu numa janela desafiando os revoltosos a matá-lo.  Correa ficou retido por um tempo num quartel cercado e teve de ser resgatado por militares fieis ao governo constitucional de Quito.  Como se apurou depois, boa parte dos militares e policiais que aderiram ao movimento golpista teriam sido enganados por uma campanha de desinformação empreendida por meios de comunicação da direita equatoriana, os quais mentiram sistematicamente sobre pequenas mudanças nos soldos dos membros dos serviços de segurança pública.  "O que aconteceu não é por alguns dólares.  É uma clara tentativa de conspiração, coordenada com o fechamento do aeroporto, com a tomada das antenas, com a interrupção da TV Equador", afirmou o presidente na sacada do palácio presidencial logo após sua libertação.

Na Argentina, segue o enfrentamento diário entre as elites capitaneadas pelo Grupo Clarín, que reúne jornais como o Clarín e o La Nación, a Rádio Miter, o Canal 13 de Buenos Aires, as TVs a cabo Multicanal e Cablevisión, portal e provedor de internet e outros meios de comunicação, e a presidente Cristina Kirchner, que promulgou a polêmica Ley de Medios.  Apesar de ainda restarem alguns recursos nos tribunais argentinos, a lei proposta há um ano entrou em vigor no último mês de setembro e, entre outras coisas, estabelece que uma mesma empresa não pode possuir canais de TV aberta e a cabo, além de reduzir de 24 para dez o limite das concessões de rádio e TV em mãos de um mesmo proprietário.  Pela nova legislação, o espectro comunicacional deve ser dividido em três partes iguais para atender o governo, o setor privado comercial e a sociedade civil organizada.  Também foi barrada a entrada indiscriminada das companhias telefônicas no mercado de TV.  Aos oligopólios midiáticos, restam menos de dez meses agora para vender algumas de suas empresas e se adequar às novas regras.  Ou então para derrubar o governo de Cristina e impor de volta as "leis do livre mercado".

Não há dúvidas de que as eleições presidenciais no Brasil também se desenrolaram fortemente impactadas por esse cenário continental.  Mais do que PSDB, DEM e PPS, foi Globo, Folha e Veja que coordenaram a campanha de extrema direita de José Serra.  Basta ver a enxurrada de denúncias vazias nos jornais, o desespero das capas de revistas e a ridícula montagem do episódio da "bolinha de papel" em incríveis sete minutos do Jornal Nacional! Mas assim como na Venezuela, Bolívia e Equador, a disputa não se encerrou nas urnas.  A Folha de S.Paulo e o Globo já conseguiram acesso ao processo da ditadura militar contra a agora presidente eleita Dilma Rousseff.  Certamente esperavam que os torturadores tivessem conseguido no início dos anos 1970 "informações" para usarem contra ela que seus batalhões de "repórteres investigativos" não conseguiram nos últimos três anos.

Ao mesmo tempo, a Velha Mídia aponta suas baterias contra o seminário internacional para discussão da regulação da mídia convocado pelo ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação Social, contra o Plano Nacional de Banda Larga, que vem sendo gestado há meses, e contra as propostas da Conferência Nacional de Comunicação, que contou em 2009 com a participação ativa de mais de 30 mil cidadãos.  Sem deixar de acusar, todo o tempo, claro, o presidente Lula e a presidente eleita Dilma de avessos à liberdade de expressão, quase que com os mesmos termos que usam contra Hugo Chávez de forma ininterrupta há quase dez anos.  Parece que 2011 não vai ser um ano muito calmo por aqui... (grifo meu)


* Fotógrafos, jornalistas e documentaristas independentes.  Vejam outros trabalhos em http://mediaquatro.sites.uol.com.br.  Publicado originariamente na Ideias em Revista, Dezembro 2010 / janeiro 2011, do SISEJUFE-RJ.

15 de dez. de 2010

Escândalo sobre a propriedade de terras brasileiras


A alta taxa de propriedade das terras brasileiras nas mãos de estrangeiros representa uma agressão ao bem-estar do povo e à soberania do país.  Essa situação precisa mudar.

Leia os artigos abaixo e saiba o que está acontecendo:

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Em mãos estrangeiras 

Laís Costa Marques, Gazeta Digital / ADITAL, 14.12.10 

20% da área explorada no país estão no Estado do Mato Grosso. Ao todo são 844,027 mil hectares em solo mato-grossense sob domínio internacional; no Brasil essa quantidade chega a 4,340 milhões (ha). 

Aproximadamente 20% das terras brasileiras pertencentes a estrangeiros em todo o país está concentrada em território mato-grossense. São 844,027 mil hectares de terras nas mãos de empresas e pessoas de outros países, porém este número pode ser ainda maior porque, apesar de ter capital estrangeiro, alguns grupos abrem firma no país e compram propriedades como se fossem brasileiros. Em todo o Brasil, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) registra que 4,340 milhões de hectares pertençam a outros países. 

A aquisição de terras no Brasil por grupos estrangeiros só é permitida se a extensão for inferior a um quarto ou 25% da superfície territorial do município onde está localizada a propriedade rural, não podendo ultrapassar 10% por um mesmo grupo estrangeiro. Isto é, um país pode ter no máximo 10% da extensão territorial em uma cidade. Em agosto deste ano, a Advocacia Geral da União (AGU) publicou um parecer com a aprovação do presidente Luís Inácio Lula da Silva para a limitação da venda de terras para estrangeiros e empresas com capital internacional, além do registro de tais terras em livros especiais nos cartórios e recomendou revisão a cada 3 meses. 

De acordo com o parecer da AGU, um outro parecer dado em 1994 quando a fiscalização sobre essas terras não era rígida nem restritiva, tinha objetivos de expandir a fronteira agrícola e promover a valorização do território nacional. Em Mato Grosso, a atuação de grupos estrangeiros é conhecida, principalmente de argentinos focados no agronegócio, seja por meio da aquisição de terras ou arrendamento. 

O consultor econômico Amado de Oliveira Filho diz que quando houve a crise no agronegócio, em 2008, muitos produtores rurais se renderam ao assédio de grupos internacionais e venderam suas terras. De acordo com o economista, descapitalizados e endividados, os produtores não viam outra saída. "Enquanto não houver um maior grau de arrecadação, não há como garantir a integridade das terras", afirma ao comentar que o governo não pode permitir que o produtor, refém das oscilações da renda no campo, entregue o patrimônio nacional na mão de grupos investidores cujas riquezas são revertidas aos países de origem. 

O produtor rural Alcindo Uggeri passou por uma situação delicada há 3 anos e sem ter como investir no plantio arrendou seus 4 mil hectares para um grupo argentino. O produtor diz que esta foi a melhor decisão porque agora ele está conseguindo saldar as dívidas e juntar verba para voltar a produzir. "Meu problema era falta de capital e agora poderei voltar a plantar", afirma ao comentar que ainda faltam 3 anos para reaver as terras. 

Uggeri, porém, nem cogita a possibilidade de abrir mão de seu patrimônio por meio de venda. "Não vendo de jeito nenhum. Eles sabem disso e por isso nem fizeram oferta". O grupo ao qual Uggeri vendeu as terras possui área ao lado de sua fazenda. Estima-se que este grupo atue em 14 municípios mato-grossenses e tenham 40 mil hectares próprios e 180 mil (ha) arrendados. 

Para aqueles que venderam as terras e se sentem injustiçados porque não receberam o que era de direito, o advogado Lutero de Paiva Pereira diz que há uma solução. Conforme explica o jurista especialista em agronegócio, com o novo parecer da AGU, os negócios realizados anteriormente e de acordo com o antigo parecer não possuem validade jurídica. "A transação é nula de pleno direito. Quem vendeu pode rever as terras, uma vez que a venda não existe judicialmente". É como se todos os contratos fossem invalidados a partir do novo parecer. 

O advogado explica que imóvel rural é uma riqueza, e como tal, é estabelecido que deve atender ao país. "As terras produtivas devem estar nas mãos dos brasileiros". A lei que limita a posse territorial por estrangeiros existe desde 1971. Em 1988 um parecer foi emitido revogando um artigo da mesma. "A partir da década de 90, então, estrangeiros passaram a investir no Brasil diretamente ou indiretamente". 

Na opinião do consultor econômico Amado de Oliveira Filho, reaver as terras vendidas em um negócio sacramentado não seria uma ação de boa fé. "Não vejo isso com bons olhos porque houve um acordo e uma transação financeira. Infelizmente, se vendeu, está vendido". Lutero de Paiva, porém, afirma que muitos produtores rurais foram injustiçados e que as dívidas os forçaram a vender as terras por valores abaixo do praticado no mercado na ocasião. "Os negócios foram feitos quando os produtores estavam estrangulados e agora existe a possibilidade de recompor o patrimônio. Tenho clientes que na época venderam por um terço do valor de mercado atual". 


Quanto à devolução do que foi pago, Pereira explica que os investidores podem querer reaver o valor contratual, ou seja, o capital declarado sobre a transação, mas que na maioria das vezes o valor declarado é menor do que o que foi pago e que por isso o produtor não iria pagar o preço da venda. 

Vendas em Mato Grosso 
A comercialização de terras em Mato Grosso para estrangeiros não possui obstáculos. A reportagem de A Gazeta telefonou para uma corretora de imóveis da região do Araguaia, se passando por representante de um grupo estrangeiro interessado na compra de uma fazenda. Segundo o corretor de imóvel, onde atua (região que vai de Barra do Garças, a 509 km da Capital, a Vila Rica, a 1.259 km), o preço do hectare é cotado entre R$ 1,5 mil a R$ 4 mil, variando de acordo com os benefícios já feitos e da localização da área. Perguntado sobre a possibilidade da aquisição por estrangeiro, o corretor disse que apesar de haver muitos grupos atuando no local, os limites municipais ainda não foram extrapolados. Em outra cidade, Brasnorte (a 579 km de Cuiabá), outra imobiliária confirmou a presença de empresas estrangeiras atuando no agronegócio, porém que ainda há possibilidades de novas aquisições.


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A estrangeirização da propriedade fundiária no Brasil

Só entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializados mais de 45 milhões de hectares, sendo que 75% destes na África e outros 3,6 milhões de hectares no Brasil e Argentina, impulsionando aquilo que se convencionou chamar, na expressão em inglês, de “land grabbing”.  O crescimento da produção agrícola e das demandas e transações de compra de terras, se concentra na expansão de oito commodities :  milho, soja, cana-de-açúcar, dendê (óleo), arroz, canola, girassol e floresta plantada.  A participação brasileira se dá fundamentalmente nos três primeiros produtos.  O artigo é de Sérgio Sauer e Sérgio Pereira Leite.

Sérgio Sauer e Sérgio Pereira Leite, Carta Maior, 20 dezembro 2010

Estamos assistindo nos últimos tempos a um crescimento do interesse e busca por terras em todo o mundo, especialmente em razão da demanda por alimentos, agroenergias e matérias primas.  Segundo recente estudo do Banco Mundial, de 2010, a demanda mundial por terras tem sido enorme, especialmente a partir de 2008, tornando a “disputa territorial” um fenômeno global.  A transferência de terras agricultáveis (ou terras cultivadas) era da ordem de quatro milhões de hectares por ano antes de 2008.  Só entre outubro de 2008 e agosto de 2009, foram comercializados mais de 45 milhões de hectares, sendo que 75% destes na África e outros 3,6 milhões de hectares no Brasil e Argentina, impulsionando aquilo que se convencionou chamar, na expressão em inglês, de “land grabbing”.

Uma constatação fundamental do estudo do Banco Mundial é que o crescimento da produção agrícola e, conseqüentemente, das demandas e transações de compra de terras, se concentra na expansão de apenas oito commodities :  milho, soja, cana-de-açúcar, dendê (óleo), arroz, canola, girassol e floresta plantada.  A participação brasileira se dá fundamentalmente nos três primeiros produtos.  Melhores preços dos agrocombustíveis e os subsídios governamentais levaram à expansão desses cultivos.  Em 2008, a estimativa era de 36 milhões de hectares a área total cultivada com matérias-primas para os agrocombustíveis no mundo, área duas vezes maior que em 2004.  Deste total, 8,3 milhões de hectares estão na União Européia (com cultivo de canola), 7,5 milhões nos Estados Unidos (com milho) e 6,4 milhões de hectares na América Latina (basicamente com cultivos de cana no Brasil).

Ainda segundo o mesmo documento, em torno de 23% do crescimento da produção agrícola mundial se deu em função da expansão das “fronteiras agrícolas”, apesar de que o aumento mais expressivo (cerca de 70%) da produção é resultado do incremento da produtividade física.  As razões dessa expansão da produção (e também do volume das transações de terras) foram:  a) demanda por alimentos, ração, celulose e outros insumos industriais, em conseqüência do aumento populacional e da renda; b) demanda por matérias-primas para os agrocombustíveis (reflexo das políticas e procura dos principais países consumidores), e c) deslocamento da produção de commodities para regiões com terra abundante, mais barata e com boas possibilidades de crescimento da produtividade.

Um dos dados mais significativos neste estudo do Banco Mundial é a caracterização dos atuais demandantes de terras no mundo:  a) governos preocupados com o consumo interno e sua incapacidade de produzir alimentos suficientes para a população, especialmente a partir da crise alimentar de 2008; b) empresas financeiras que, na conjuntura atual, encontram vantagens comparativas na aquisição de terras e, c) empresas do setor agroindustrial que, devido ao alto nível de concentração do comércio e processamento, procuram expandir seus negócios.

Após a crise dos preços dos alimentos, em 2008, e das previsões de demanda futura, não é surpreendente o crescente interesse de governos – puxados pela China e por vários países árabes – pela aquisição de terras para a produção de alimentos para satisfazer o consumo doméstico.  Chamam a atenção, no entanto, os investimentos do setor financeiro, historicamente avesso à imobilização de capital, especialmente na compra de terra, um mercado caracterizado pela baixa liquidez.

Na mesma perspectiva do levantamento do Banco Mundial, estudos encomendados pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural (NEAD) do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do governo brasileiro, mostram que houve um crescimento significativo de investimentos estrangeiros diretos (IEDs) totais no Brasil a partir de 2002 (107% entre 2002 e 2008, passando de 4,33 a 8,98 bilhões de dólares no mesmo período).  Segundo o jornal O Globo, o IPEA mostrou que os IEDs no setor primário brasileiro passaram de US$ 2,4 bi, em 2000, para US$ 13,1 bi, em 2007, sendo que a alta de 445% foi puxada pela mineração, que respondeu por 71% do total recebido nesse último ano.  Também houve crescimento da participação externa nas atividades agropecuárias como, por exemplo, no cultivo da cana-de-açúcar e da soja e na produção de álcool e agrocombustíveis, especialmente por meio da compra e fusões de empresas brasileiras já existentes.

Apesar de não existir um levantamento mais sistemático, é possível concluir que esses investimentos estrangeiros no setor primário brasileiro resultam também na aquisição de muitas terras.  De acordo com levantamento realizado pelos estudos do NEAD, no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), existiam 34.632 registros de imóveis em mãos de estrangeiros em 2008, que abarcavam uma área total de 4.037.667 hectares, números bastante expressivos considerando-se que não abrangeu o “período da corrida por terras” após crise de 2008.  Deve-se ressaltar que mais de 83% desse total são imóveis classificados como grandes propriedades (acima de 15 módulos fiscais).

Utilizando diferentes fontes de informações, inclusive pesquisas no SNCR, mas também empresas de consultoria no ramo, os jornais de circulação nacional vêm publicando, desde meados dos anos 2000, dados sobre este processo de aquisição de terras por estrangeiros no Brasil.  Em matéria do dia 02/11/2010, a partir de análises do Cadastro do INCRA, a Folha voltou a divulgar o avanço sobre as terras pelo capital estrangeiro.  Segundo a reportagem, “empresas e pessoas de outros países compram o equivalente a 22 campos de futebol em terras no Brasil a cada uma hora.  Em dois anos e meio, os estrangeiros adquiriram 1.152 imóveis, num total de 515,1 mil hectares”. 

Este interesse global por terras (relativamente abundantes) da América Latina (especial destaque ao Brasil, Argentina e Uruguai) e da África subsaariana tem provocado uma elevação dos seus preços.  Constatado pelo citado estudo do Banco Mundial, o aumento de preço das terras brasileiras também vem sendo regularmente anunciado pela grande imprensa.  No entanto, não há estudos sistemáticos capazes de oferecer um panorama nacional – ou mesmo regional – das transações e preços, sendo que as notícias são ilustradas com levantamentos de casos exemplares e dados locais, municipais ou regionais.

Segundo o jornal O Valor, os projetos sucroalcooleiros implantados entre 2008 e 2010 provocaram a valorização das terras nas regiões de expansão dos cultivos de cana-de-açúcar, especialmente nas novas “fronteiras”, localizadas principalmente nos Estados de Tocantins, Goiás, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, com índices que chegam até a 33% de majoração nos preços.  Dados sobre o comportamento do mercado de terras, calculados pelo Instituto FNP para várias regiões brasileiras, corroboram as informações da imprensa sobre aumentos nos preços dos imóveis rurais em áreas de expansão das monoculturas (soja e cana, sobretudo).

Por outro lado, é fundamental ter presente que parte significativa dos investimentos estrangeiros é financiada com recursos públicos, especialmente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Fundo Constitucional do Centro Oeste (FCO).  Estes empréstimos e incentivos fiscais estão sendo alocados principalmente em regiões de expansão do cultivo de cana e produção de etanol (Centro-Oeste) e soja (Centro-Oeste, Amazônia, Bahia e Tocantins).

O crescente volume de aplicações estrangeiras em terras brasileiras tem sido objeto de manifestações contrárias, inclusive, de segmentos representativos do chamado “agronegócio” brasileiro, bem como de editoriais da grande imprensa.  É interessante notar que mesmo nesses setores que advogam uma perspectiva “pró-mercado”, há claramente uma posição de alerta com a quantidade de terras sendo adquiridas por estrangeiros, distanciando-se portanto das recomendações do estudo do Banco Mundial, mais voltado a explorar as janelas de oportunidades dessas novas áreas por meio do que vem sendo denominado de “investimentos responsáveis”.

Em uma perspectiva distinta, o Executivo Federal, a partir da preocupação com uma possível perda de soberania territorial, solicitou que a Advocacia Geral da União (AGU) fizesse uma revisão do Parecer GQ nº 181, publicado em 1998, que desmobilizou qualquer forma de controle efetivo sobre a aquisição de terras por parte de empresas estrangeiras no Brasil.  De acordo com os termos do documento da AGU, desde os pareceres anteriores, de 1994 e 1998, “...o Estado brasileiro perdera as condições objetivas de proceder a controle efetivo sobre a aquisição e o arrendamento de terras realizadas por empresas brasileiras cujo controle acionário e controle de gestão estivessem nas mãos de estrangeiros não-residentes no território nacional”.

Diante da conjuntura atual de uma crescente demanda por terras e da constatação de que o INCRA não possui mecanismos concretos para efetuar um controle adequado das compras de imóveis rurais, o grupo de trabalho formado para avaliar tal situação concluiu que era necessária a “revisão dos pareceres de modo a dotar o Estado brasileiro de melhores condições de fiscalização sobre a compra de terras realizada por empresas brasileiras controladas por estrangeiros”.

A AGU publicou então o Parecer nº LA-01, de 19 de agosto de 2010, o qual re-estabeleceu possibilidades para limitar, ou melhor, para regulamentar os processos de estrangeirização das terras no Brasil.  Este documento legal retoma a Lei nº 5.709, de 1971, afirmando que a mesma deve ser acolhida pela Constituição de 1988.  Esta lei foi criada para regulamentar a compra de terras por estrangeiros, estabelecendo o limite máximo de compra em 50 módulos (art.  3º), sendo que a soma das propriedades de uma pessoa estrangeira não pode ultrapassar a um quarto (¼) da área do município (art.  12).

Sem desmerecer a importância jurídico-legal de tal parecer, cujo anúncio causou boa impressão em determinados circuitos internacionais ao mostrar a possibilidade de ação efetiva do Estado em área tão estratégica, a solução do problema não se materializa com a referida publicação.  Primeiro, há problemas no próprio conteúdo da Lei 5.709 como, por exemplo, o limite de 50 módulos ou a restrição a um quarto da área do município, pois há municípios imensos no Brasil, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste, principais alvos da busca por terras e expansão do agronegócio.  No entanto, tal iniciativa, abre um caminho para que essa discussão ganhe maior espaço e amplitude no país.

A problemática fundiária transcende em muito ao problema do “land grabbing”, que pode envolver desde a “grilagem ou arresto de terras” até transações comerciais propriamente ditas, uma reação aos efeitos negativos da corrida por terra e a conseqüente estrangeirização.  É fundamental não esquecer os históricos níveis de concentração da propriedade da terra no Brasil, novamente corroborados pelo Censo Agropecuário de 2006.  Essa concentração fundiária não será revertida somente com adoção de mecanismos de controle da aquisição de terras por estrangeiros, pois a esmagadora maioria das grandes propriedades está nas mãos de poucos brasileiros, o que torna cada vez mais urgente a adoção de políticas redistributivas e de ordenamento territorial, como, por exemplo, a reforma agrária e o reconhecimento das terras pertencentes à populações indígenas e tradicionais.

Sérgio Sauer é professor da Universidade de Brasília (UnB), na Faculdade de Planaltina (FUP) e na pós-gradução do Propaga e Relator Nacional do Direito Humano a Terra, Território e Alimentação - Plataforma DhESCA Brasil.

Sérgio Pereira Leite é professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ) e Coordenador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA).

28 de nov. de 2010

Vitória da democracia, desapontamento da oposição

'Manter democracias' tem sido tarefa difícil na América Latina.  Governos eleitos pelo povo são legítimos, e depô-los é traição.  Entretanto, a história nos mostra uma série interminável de golpes de estado, removendo tais governos e instaurando ditaduras reacionárias que imediatamente revertem os benefícios conquistados pelo povo durante os períodos democráticos.

O Brasil passou por vários ciclos democráticos e autoritários.  A ditadura militar que se implantou no Brasil em 1964 destroçou a liberdade de participação do povo no governo e estabeleceu mais de 20 anos de opressão elitista.  Nesse período, o notório General Golbery do Couto e Silva, considerado mentor intelectual da ditadura militar, publicou seus estudos sobre geopolítica em um livro entitulado Geopolítica do Brasil, onde descreve tais ciclos autoritários e democráticos no país.  Após cêrca de 20 anos de democracia, esse estudo nos alerta para a possibilidade de que se instaure à força outro ciclo autoritário...

Durante aquele período ditatorial, a mídia ajudou os tiranos a paralizarem o povo e angariou uma legitimidade à ditadura que apenas a propaganda enganadora seria capaz de obter.  Por isso, após anos destituído de sua cidadania, de seus direitos cívicos e sociais, desinformado pela mídia, o povo levou algum tempo para aprender a votar de acordo com seus interesses:  o PT sofreu tres derrotas consecutivas nas eleições presidenciais antes de conseguir 'chegar lá' – hoje, é aplaudido por cêrca de 90% do povo que acaba de eleger sua terceira vitória consecutiva nessas eleições.

Convém lembrar que democracia não significa mudança radical, socialismo.  Mas, durante governos democráticos, é possível chegar-se a patamares altos de liberdade, justiça e igualdade social, os quais, teoricamente, deveriam ser desejáveis para todos.  Mas, na realidade, isso não occorre;  a elite teme perder seus privilégios;  tanto que até acredita ser possível alcançar-se o 'comunismo' democraticamente!

Agora, a oposição começa a sentir o pêso de sua derrota.  Mas, como é constituída por elementos poderosos e perigosos – e, como sabemos, com vínculos traiçoeiros no exterior – , é bem capaz de orquestrar algum golpe contra o novo governo.  Nunca é demais criar regulamentação no sentido de prevenir tal acontecimento.  Pode-se dizer que a elite brasileira tentou dar o golpe mediático no governo, nos últimos anos, por diversas vezes, usando todo tipo de calúnias e maquinações na tentativa de macular e gerar um movimento nacional contra o governo do PT.  Não conseguiu seu intento.  Um golpe mais violento poderia estar em sua pauta, agora...

O texto abaixo destaca a recente aprovação, pela União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), de um protocolo contra golpes anti-democráticos na América Latina:

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UNASUL aprova protocolo contra golpes no continente

ANSA, Rede Brasil Atual, 27 novembro 2010

O presidente Lula avalia que o mecanismo "será fundamental para afastar riscos à ordem institucional na região" (Foto: Ricardo Stuckert, Presidência)

Os presidentes dos países da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL) aprovaram na sexta-feira (26) medidas concretas com o objetivo de enfrentar tentativas de golpe de Estado, como a interrupção do comércio, bloqueio de voos, fechamento de fronteiras e também a cessão da provisão de energia elétrica.

As medidas já haviam sido discutidas na reunião extraordinária de setembro passado, após o presidente equatoriano, Rafael Correa, que até esta semana estava no comando da presidência pro tempore do grupo, ter sido alvo de uma tentativa de desestabilização.

Em Georgetown, capital da Guiana, os oito líderes presentes no evento – entre eles o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a argentina Cristina Kirchner, o colombiano Juan Manuel Santos e o venezuelano Hugo Chávez – ratificaram a importância de uma cláusula democrática, que visa a prevenir os golpes de Estado na região, informou o venezuelano Hugo Chávez.

Um rascunho do projeto já havia sido aprovado na noite desta quinta-feira pelos chanceleres dos países-membros do bloco, em encontro prévio à IV Cúpula de Chefes de Estado e de Governo. Outros organismos semelhantes, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), possuem documentos do tipo, com o objetivo de garantir a vigência da democracia.

Por outro lado, um tema que seria o principal do evento foi adiado. Eventuais candidaturas ao posto de secretário-geral da UNASUL não foram analisadas. O cargo está vago desde o falecimento do ex-presidente argentino Néstor Kirchner, em 27 de outubro passado. O assunto deverá ser retomado na próxima reunião.

Mídia tradicional teme o futuro

A entrevista do Presidente Lula aos blogueiros foi, sem dúvida, um marco na história da comunicação de massa no Brasil.  Por isso, não é demais nos atermos novamente em considerações sobre esse acontecimento.

É preciso que se reconheça o importante aspécto da questão tecnológica:  a tecnologia avançada da Internet permite uma abertura, uma maior participação do povo no processo de transmissão de informações e de idéias.  Trata-se da revolução dos meios de comunicação de massa.  Os blogueiros, as pequenas agências de notícias, as redes sociais ativistas estão à frente:  são a vanguarda desse movimento.  Certamente, a mídia tradicional está consternada...

O texto de Gabriel Brito é elucidativo:

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Lula, blogueiros e o mais importante: internet incomoda mídia corporativa

Gabriel Brito, Correio da Cidadania, 24 novembro 2010

Na manhã desta quarta-feira, 24, a comunicação brasileira viveu um simbólico momento de transição. Em iniciativa praticamente inédita, um grupo de jornalistas que mantêm blogs políticos na internet (alguns sem vinculação com outros veículos de mídia) entrevistou o presidente Lula no Planalto, com transmissão ao vivo pela rede, por twitcam.

Formada por jornalistas que trabalham na chamada mídia alternativa – hoje em dia sinônimo de mídia de esquerda, tamanha a padronização conservadora dos veículos tradicionais – , a bancada entrevistadora articulou a conversa com o presidente em meados de agosto, após o 1º Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, aproveitando a oportunidade para também disseminar a revolução que as comunicações inelutavelmente viverão, com produção e transmissão de conteúdo ao alcance de qualquer cidadão minimamente equipado das atuais tecnologias.

Obviamente, tais transformações terão impacto sobre a imprensa hegemônica, ainda pouco mensurável, mas o fato é que ela já se encontra em polvorosa com o impulso de ferramentas que livrem a população das "nove ou dez famílias que controlam a comunicação", conforme já dissera o presidente.

Por conta disso, já estão se entrincheirando na defesa de seus interesses. Isso num momento de efervescência no setor, após o Seminário Internacional de Comunicações, convocado pela Secretaria de Comunicação do governo, sob liderança do ministro Franklin Martins e realizado no início do mês, e o anúncio de quatro estados (BA, CE, AL e PI) da pretensão de criarem conselhos estaduais de comunicação, com o intuito de fiscalizar a atuação da mídia e seu respeito às leis e a diversos direitos individuais – escandalosamente violados pelos atuais donos da comunicação.

Não por coincidência, começaram a pipocar matérias sobre os "perigos" de uma internet cada vez mais habitada pelos brasileiros, onde haveria somente terra sem lei e nenhuma proteção à privacidade das pessoas, de preferência com exemplos isolados de mau uso da rede, ao mesmo tempo em que não estimula e nem discute seu uso adequado, cidadão e emancipador.

Estranho que não tenham sido feitas menções às calúnias que a campanha serrista (oficial ou não, mas serrista) espalhou pela internet durante as eleições, esta sim uma clara demonstração de como a rede mundial pode ser usada para fins nefastos e regressivos. Nossa mídia tampouco destaca o quanto se pode informar melhor com a maior diversidade de fontes oferecidas pela internet, pois é claro que isso afeta diretamente seus reais interesses na questão.

Os ‘independentes’ acusam
Dessa forma, é evidente que a inédita modalidade de entrevista realizada pelos jornalistas – ou blogueiros progressistas, como também se cunhou – causou incômodo nos jornalões e seus escribas. Muitos tentaram colar no grupo a pecha de puxa-sacos, chapa branca etc., especialmente pelo apoio declarado a Dilma no último pleito. O que escondem é que na verdade já começou a guerra entre duas alas da comunicação brasileira, claramente antagônicas ideologicamente.

Tamanha confrontação só tem a contribuir com os debates públicos, pois vem para desmistificar definitivamente a idéia de que nossa mídia tradicional é desprovida de partido, ideologia e preferência política, pautando-se pela isenção e independência, como gosta de se auto-elogiar. Uma brutal desonestidade intelectual, como deixaram claro as recentes coberturas de Folha, Estadão, Globo, Veja e Cia nada bela. Aliás, a própria presidente da ANJ, Judith Brito, havia tirado a máscara, voluntariamente, ao anunciar em março que a "imprensa seria o partido de oposição este ano".

Dessa forma, a mídia e seus jornalistas cativos e já perfeitamente adequados ao mundo regido pelo mercado (mas sem ideologia, claro) não conseguiram disfarçar o ciúme causado pela iniciativa dos blogueiros, o que certamente tornou o momento mais divertido para quem acompanhou.

Não foram poucos os que tentaram desmoralizar a conversa com o presidente. Marcelo Tas, apresentador do CQC e pseudopolitizado, não se segurou: "Fazer entrevista só com simpatizando é fácil". "Atenção puxa-sacos que comemoram 6 mil de audiência: o CQC dá 30 mil toda semana". Patética demonstração de recalque de quem pensa que trabalhar para a família Saad e a TV Bandeirantes, cercado de anúncios de banco e multinacionais, tem autoridade para se dizer mais independente e autêntico que outro profissional. Fora que seguiu discurso raivoso de outros famosos, como o humorista (ou ex?) Marcelo Madureira, que ruborizou até Diogo Mainardi no Conexão Manhattan, quando chamou o presidente de "vagabundo". Claro que – sem ideologia, repita-se – ambos são contra regulação na mídia, pois assim vomitam seus ódios e preconceitos, além de agradarem patrões, de forma impune, de preferência sem o menor questionamento do público, com quem dizem ter rabo preso.

A mídia que crescemos vendo soberana e formadora quase exclusiva de opinião passa, na verdade, por um momento de pura defensiva. Primeiramente, pela maior diversidade de visões e análises que podem ser encontradas na internet e a autonomia amplificada que todo cidadão tem em escolher o conteúdo a ser prestigiado, além da junção de forças de diversos movimentos e atores sociais que têm impulsionado novos veículos de comunicação (especialmente, é claro, na internet). Após inúmeras demonstrações de tendenciosidade política nos últimos anos e apoio explícito ao tucanato, a aprovação massiva da gestão de Lula levantou forças contra uma mídia seletiva na hora de criticar governos – que a rigor foram hiper-semelhantes: "Um mais elitista, outro mais assistencialista", observou Ildo Sauer recentemente ao Correio.

Dessa forma, o tempo de fato tirou máscaras de uma mídia extremamente corrompida, espúria e defensora do status quo, ou seja, inimiga da idéia de um Brasil realmente para todos. Além de ser propagandista de interesses de grandes grupos econômicos e multinacionais, que pagam vultosos anúncios em suas páginas. Sem enganar como antes, suas audiências e vendas caem, há 10 anos, de forma "lenta, gradual e segura", para usar um termo da ditadura que essa mesma mídia um dia apoiou e impulsionou. A mesma que se diz defensora de direitos humanos (em países de governos desafetos dos EUA), da liberdade de expressão e imprensa. Só rindo... Ou chorando, depois que Maria Rita Kehl foi demitida do Estadão por ‘delito de opinião’, conforme a inacreditável justificativa do folhetim da família Mesquita.

O que, de fato, eles combatem
Mas retomando o ponto central, o que o próprio presidente chamou, para regozijo dos entrevistadores, de "mídia antiga" e "mídia comum" vive um inexorável declínio. Não por estar em situação irremediável, e sim por se negar a rever conceitos, na tentativa de retomar o mínimo de pluralismo em suas páginas. Por isso boicotou, e tentou descaracterizar ao máximo, a Conferência Nacional de Comunicação, que debateu inúmeros pontos carentes de maior legitimidade em nossas comunicações. Também por tamanho ranço conservador foi a favor do fim da lei de imprensa, ao mesmo tempo em que não quer uma nova, muito menos a regulamentação da profissão de jornalista. Ou seja, defende tudo que mantenha o setor como autêntica terra de ninguém, rótulo que agora tenta colar na internet, pelo simples fato de que sobre essa ferramenta jamais possuirá o controle de que desfruta nas demais frentes.

De resto, ainda não atingimos o ponto de fervura desse embate que apenas começa. A presidente eleita Dilma já mostrou claras intenções de atuar com mais força no sentido de criar mecanismos de monitoramento da mídia (o que não tem nada a ver com censurar conteúdo previamente, conforme desinforma a mídia comercial).

Nesse sentido, o Seminário da Comunicação recém encerrado foi um importante passo. O ministro Franklin Martins foi didático ao reiterar que não se está discutindo controlar a produção de conteúdo, como se vivêssemos sob ditadura, mas apenas de criar mecanismos de evolução no direito à comunicação e à liberdade de imprensa e expressão, que no Brasil de hoje é de empresa, como muitos estudiosos da área afirmam. Ou seja, democratizar as nossas comunicações para muito além do que temos hoje. Nesse caso, a presença de representantes de governos como EUA, Portugal, Espanha, Argentina e França, sustentando que regulação não é censura, fez a imprensa engolir um pouco de suas mentiras.

O terceiro aspecto a assombrá-la é a entrada das Teles no espectro da comunicação, o que segundo Franklin Martins está fadado a ocorrer mais ou menos dia, seguindo a tendência global. Com a possível abertura de certas transmissões, concessões e outras exibições de conteúdo para todo tipo de mídia, de TV e rádio a celular, não será fácil fazer frente a um mercado que movimenta R$ 70 bilhões por ano, ao passo que o audiovisual não supera os R$ 15 bilhões. Cruel ironia ser devorada pelo mercado livre que tanto cultuou. Por isso agora já advoga pela restrição da participação estrangeira em grupos de comunicação.

De olho no futuro
A entrevista em si foi descontraída e realizada em clima amigável;  afinal, a poeira pós-eleitoral não terminou de baixar e os entrevistadores expressaram aqueles que ficaram acima de tudo aliviados com a derrota de Serra e das alas mais conservadoras e obscuras da sociedade brasileira, com quem o tucano morreu abraçado na reta final.

O único perigo a essa mídia que floresce e finalmente faz o contraponto aos grupos tradicionais é depositar demasiadas esperanças democráticas em um governo que na prática não se mostrou disposto a contrariar setores sempre privilegiados. Mas talvez seja uma euforia compreensível, pois ao menos na arena da comunicação o cenário monopólico e desértico de idéias tem sofrido significativas transformações, abrindo perspectivas de um dia o país finalmente atender às demandas por espaços de expressão que diversos grupos da sociedade brasileira reclamam.

O que a entrevista dos blogueiros com o presidente e sua simples maneira de transmiti-la mostrou com nitidez ao público é que está cada vez mais fácil promover e prestigiar um jornalismo mais comprometido com interesses populares, conforme reza a função social da profissão, aparentemente também ‘revogada’ nas maiores redações do país. Uma das raras vezes em que qualquer indivíduo poderá se apropriar, praticamente por igual, do que há de mais avançado em termos tecnológicos. O que desde já desagrada quem sempre comeu a maior fatia do bolo e agora luta por sobrevivência com as mesmas armas e idéias de sempre.

26 de nov. de 2010

Indústria naval e soberania

Reproduzo abaixo o excelente artigo de Beto Almeida (veja ainda nossa página sobre defesa e diplomacia):

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A retomada da indústria naval e a soberania

Beto Almeida *, ADITAL, 25 novembro 10

'Marinheiro , marinheiro,
Quero ver você no mar
Eu também sou marinheiro
Eu também sei navegar'
– Geraldo Vandré

Muitas lições podem ser tiradas da retomada da indústria naval no Brasil que nesta sexta-feira lançou, no Estaleiro Mauá, em Niterói mais uma grande embarcação ao mar, o navio Sérgio Buarque de Hollanda.  Mas, certamente, deve-se discutir com prioridade que não é possível pensar um Brasil soberano sem uma indústria naval desenvolvida.  Para aqueles que, até mesmo nas fileiras da esquerda, chegaram a dizer que os candidatos presidenciais eram todos iguais, eis aqui uma estupenda diferença:  enquanto os neoliberais conseguiram demolir e paralisar uma das mais expandidas indústrias navais do mundo, a brasileira -fazendo com que desde 2000 não se produzissem mais navios aqui- o governo Lula acaba por transformar o setor em fonte geradora de emprego, desenvolvimento tecnológico, promoção de justiça social e, especialmente, alavanca indispensável para se alcançar a soberania.

O que pensar de um país com costa superior a 8 mil e 500 quilômetros sem uma indústria naval desenvolvida? Eis aí a tarefa dos neoliberais que se ocuparam de destruir o que havia sido levantado na Era Vargas em particular.  O Brasil chegou a ter a sua empresa estatal no setor, a Loyd Brasileiro, e a ocupar uma posição de destaque no cenário mundial da construção naval.  A própria navegação de cabotagem teve expressivo desenvolvimento e nem podia ser diferente.  Vargas chegou a criar a frota do álcool e do petróleo.  Com o neoliberalismo dos anos 90 tem início a demolição devastadora.  Ela alcançou todos os pilares estruturais do transporte, seja ferroviário (privatização da Rede Ferroviária), aéreo (privatização da Embraer) e o naval, com a privatização do Loyd Brasileiro seguida de uma programada desindustrialização.  O desemprego foi dramático, generalizado.

Organizadores de derrotas
Demolir a indústria naval é organizar a dependência, é organizar a derrota de uma nação.  Mais que isto, é programar sua incapacitação para a defesa, pois sem indústria naval não há como ter também uma Marinha equipada à altura dos potenciais de riqueza que devem ser defendidos.  As autoridades de defesa já indicaram, em numerosas oportunidades, a situação de desarmamento em que se encontra e ainda se encontra a Marinha Brasileira, agora em fase de recuperação.  É certo que ainda falta muito, porém, recuperar a indústria naval é condição indispensável para organizar uma capacidade de defesa do porte das magníficas riquezas que o petróleo pré-sal representa.  Aí está o desafio.  Nesta linha de raciocínio podemos concluir que uma indústria naval recuperada é fator que se junta à Nova Estratégia de Defesa Nacional.

Há alguns anos, antes da divulgação da existência do petróleo pré-sal, a imprensa noticiou a existência de um estranho relatório da CIA indicando que as plataformas da Petrobrás em alto-mar eram muito vulneráveis a atentados terroristas.  Seria um relatório ou seria uma espécie torta de ameaça, ainda que velada? Agora, vemos a Quarta Frota dos EUA ser retomada e se insinuar pelos mares do sul depois de décadas paralisada.  Junte-se a isto, a discussão recente na OTAN sobre a mudança de sua doutrina militar, cujo raio de operação deverá incluir o Atlântico Sul.

De fato, na situação atual a Marinha não tem ainda as condições para realizar uma defesa efetiva de todo o potencial de riquezas contido na plataforma continental brasileira.  Esta área, agora ampliada para 350 milhas, também chamada Amazônia Azul, possui, além de petróleo, gigantescas reservas de biodiversidade sempre desafiando nossas universidades e os centros de tecnologia da Marinha para o desenvolvimento das tecnologias apropriadas ao seu adequado aproveitamento em favor do nosso povo.

Em resposta à proposta de intervencionismo ampliado da OTAN, o governo brasileiro, pela voz do Ministro da Defesa, Nelson Jobim, já afirmou que as nações desta região sul deverão capacitar-se para ter a condição de dizer NÃO quando chegar a situação de ter que dizê-lo concretamente, ou seja, tendo capacidade de defesa para fazê-lo.  Sem indústria naval, sem tecnologia própria, sem indústria de defesa, não há como falar de soberania efetiva.

A retomada da indústria naval, o projeto do submarino nuclear, o reequipamento da Marinha, e, sobretudo, sua modernização, são medidas que se sintonizam plenamente com a renacionalização da Petrobrás, sua consolidação e com medidas que recuperam o papel do estado na formulação das diretrizes econômicas.  Ou seja, exatamente ao contrário dos governos neoliberais, para quem o estado deve ser mínimo.

Afinal, ricos não precisam de estado.  A informação de que há centenas de navios e embarcações encomendadas pela Petrobrás, gerando milhares e milhares de empregos qualificados e com carteira assinada, reforçam o movimento sindical, a previdência, o mercado interno.  Até mesmo a Escola Técnica do Arsenal de Marinha, que há 10 anos estava paralisada, voltou a ativa e está formando técnicos imediatamente contratados pela construção naval.  Até a estatal venezuelana, a PDVSA, tem encomendados no Brasil a construção de 17 embarcações petroleiras.  Integração produtiva latino-americana é o outro ingrediente neste episódio.

Soberania em vários quadrantes
Mas, para além desta conclusão que liga recuperação naval e soberania, o lançamento do novo navio, cuja madrinha é a cantora Miúcha, estimula a reflexão sobre outras medidas necessárias.  Se era absurdo um país do porte do Brasil não tivesse uma indústria naval, também o é não ter sob controle público a indústria aeronáutica, sobretudo porque a Embraer foi produto de um esforço da poupança nacional, irresponsavelmente entregue aos interesses internacionais, quando há todo um potencial de aproveitamento da aviação regional por desenvolver aqui no Brasil.

O resultado da privatização da Embraer e sua dependência do mercado internacional foi a demissão de mais de 4 mil trabalhadores da ex-estatal quando a crise estourou no capitalismo do primeiro mundo.

Certamente, a estratégia deve voltar-se para o mercado interno.  Como disse Lula no lançamento do "Sérgio Buarque de Hollanda" enquanto os EUA estão perdendo 70 mil empregos, o Brasil está gerando este ano mais de 2 milhões e meio de novos postos de trabalho.  Aqui nasce uma nova classe média, nos EUA há uma erosão na classe média, que está sendo despejada, dormindo nas praças públicas…

Com a imensidão do Brasil e sem sistema de transporte ferroviário eficiente - também foi demolido - a aviação regional poderia receber um grande impulso no Brasil, mas não sem antes recuperar o controle sobre a Embraer, como está fazendo na área naval e de petróleo.

Cultura e soberania
Assim sucessivamente.  Todas as medidas neoliberais resultaram em enormes prejuízos para a poupança popular, ou para a tecnologia nacional, ou para a soberania.  Ou tudo junto.  Se fôssemos analisar o cinema, por exemplo, quando existia a Embrafilme, cerca de 40 por cento do mercado cinematográfico era ocupado por produção nacional.  Bons filmes e maus filmes, como em todo lado.  Mas, havia uma indústria viva, gerando empregos, absorvendo talentos, renovando-se e superando em linguagem e em capacidade produtiva.  O fim da Embrafilme jogou o cinema brasileiro no chão.  Sob aplausos do cinema norte-americano que passou a ocupar 95 por cento do mercado brasileiro.  E cinema também é soberania, como parte da construção da identidade nacional.

A retomada da indústria naval e do papel protagonista do estado são medidas inequivocamente necessárias.  E respondem concretamente aos sinais de aprofundamento da crise nos centros do capitalismo.  E bem sabemos, pela história, que as crises mais agudas do capitalismo tendem a buscar superação na economia de guerra.  Por isto o intervencionismo crescente, sem que Obama possa mudar quase nada.  Por isso o reforço orçamentário da indústria bélica dos EUA, a principal rubrica do orçamento, o que equivale a uma ameaça contra os países que possuem grandes reservas de riqueza, como é o nosso caso.  E ainda não nos recuperamos plenamente da devastadora demolição organizada pelos neoliberais, um desarmamento unilateral, em favor dos que pretendem tomar conta dos mares, ignorando soberanias e o direito dos povos.

Há um conjunto de sinais sombrios indicando que o mundo cobrará de nós brasileiros a coragem e a rebeldia de João Cândido, da Revolta da Chibata, o almirante negro da música de Aldir Branco e João Bosco.  Mas, a embarcação do Brasil Nação está encontrando o rumo certo.

* Presidente da TV Cidade Livre de Brasília.  Membro da Junta Diretiva da Telesur.