23 de jan. de 2017

Aguardando Trump: a crise sistêmica global e as medidas desesperadas das elites



Jorge Beinstein, resistir.info, 17/12/2016.  Revisado para o português do Brasil por Marisa Choguill.

A partir da vitória de Trump, os meios de comunicação hegemónicos lançaram uma avalanche de referências ao "protecionismo econômico" do futuro governo imperial e, em consequência, ao possível início de uma era de desglobalização.

Na realidade, a causa dessa desglobalização anunciada não será a posse de Trump e sim o resultado de um processo que deu o seu primeiro passo com a crise financeira de 2008 e que desde 2014 se acelerou, quando o império entrou num percurso descendente insuperável.

Do ponto de vista do comércio internacional, a desglobalização vem avançando desde há aproximadamente cinco anos. Segundo dados do Banco Mundial, na década de 1960 as exportações representaram em média 12,2% do Produto Global Bruto; na década seguinte, passaram a 15,8%; nos anos 1980, chegaram aos 18,7%; mas, em fins dessa década, o processo acelerou-se e, em 2008, atingiu o seu nível máximo com 30,8%. A crise desse ano assinalou o teto do fenômeno, a partir do qual ocorreu uma descida suave que se acentuou a partir de 2014-2015 (1).

A propaganda de que as economias se internacionalizariam cada vez mais, condenadas a exportar porções crescentes da sua produção, foi desmentida pela realidade. Desde 2008 até agora, a globalização comercial está a reverter.



Mas, as duas décadas de globalização acelerada foram principalmente um movimento de financeirização, de hegemonia total do parasitismo financeiro sobre o conjunto da economia mundial. Seu centro motor encontrava-se nos Estados Unidos, estendendo suas fortalezas ao conjunto do ocidente e ao sócio oriental Japão. Os chamados "produtos financeiros derivados", negócios especulativos altamente voláteis, verdadeiro cerne do sistema, no ano de 1999, chegavam a 80 trilhões de dólares, aproximadamente duas vezes e meia o Produto Mundial Bruto. A seguir, essa massa expandiu-se vertiginosamente e, em 2008, pouco antes do desastre financeiro, atingiu os 683 trilhões, quase 12 vezes o Produto Mundial Bruto desse ano. Aí, atingiu o seu teto histórico e, a seguir, cresceu muito pouco em termos nominais, de modo que, em fins de 2013, chegava aos 710 trilhões (9,3 vezes o Produto Global Bruto de 2015). A oligarquia financeira havia entrado em declínio - o que agravou o seu canibalismo interno e suas tendências predatórias, não só na periferia como também no centro do sistema.



A esses processos econômicos acrescentou-se uma profunda crise geopolítica. O expansionismo político-militar do Império foi travado no seu principal território de operações: a Ásia. Os dois rivais estratégicos do ocidente, a China e a Rússia, estreitaram a sua aliança, e grandes, médios e pequenos Estados da região foram para o seu espaço: desde a Índia até o Irã, passando pelos países da Ásia Central. As recentes guinadas da Turquia e das Filipinas, afastando-se da influência norte-americana e aproximando-se do espaço chinês-russo, assinalam o declínio da dominação periférica do imperialismo ocidental, desde o Mar Mediterrâneo até o Oceano Pacífico, nos dois extremos da Eurásia. O fracasso estado-unidense na Síria assinala o princípio do fim da sua onipotência militar.

Contudo, a decadência do ocidente não implica a ascensão segura dos capitalismos de estado russo e chinês como novos donos do mundo. A crise está a chegar à China, com a desaceleração do seu crescimento, enquanto a Rússia encontra-se em recessão. Ambas as potências são afetadas pelo declínio dos mercados ocidentais e do Japão, seus principais clientes. Assim, tentam compensar essas perdas estendendo seus negócios e acordos políticos à periferia, especialmente ao espaço asiático. Talvez o mais ambicioso projeto chinês seja o da "Nova Rota da Seda", gigantesca massa de investimentos em infraestrutura e sistemas de transportes terrestres e aquáticos espalhados pela Ásia que apontam à integração comercial do espaço euroasiático. Segundo o Financial Times (2), esses investimentos chegam a 890 bilhões de dólares. Esse número poderia ser comparado com o do Plano Marshall, o qual, em valores atuais, representaria cerca de 130 bilhões de dólares. A China estaria a promover nessa zona investimentos equivalentes a mais de seis Planos Marshall!

O problema é que todas essas economias às quais a China procura se integrar estão a ser golpeadas pela crise. A queda dos preços das matérias-primas deprime o conjunto da periferia, encurrala a Rússia, o Irã, as repúblicas centro-asiáticas... enquanto a Europa declina.

A crise é global e obedece à dinâmica do capitalismo como sistema planetário, à sua degeneração parasitária que degrada tanto os países centrais como os periféricos, emergentes ou não.

Agora, a América Latina também é vítima dessas mudanças. No seu recuo rumo ao pátio traseiro histórico imperial - a América Latina -, os Estados Unidos executam aí uma estratégia flexível e esmagadora de reconquista e saqueio que em poucos anos conseguiu deslocar os governos de Honduras, Paraguai, Brasil e Argentina, encurralar a Venezuela, e por de joelhos a cúpula da insurgência colombiana. Contudo, essa reconquista produz-se no quadro da crise econômica, social-institucional, cultural e geopolítica do Ocidente, que leva ao pântano os regimes lacaios do continente. As vitórias direitistas no Paraguai, Argentina ou Brasil anunciam profundas crises de governabilidade, onde seus "governos", na realidade bandos de saqueadores, geram com as suas ações grandes destruições do tecido econômico e, inevitavelmente, a ascensão de protestos sociais maciços e crescentes. Dito de outra forma, a atual arremetida direitista não é o começo da reconversão colonial da região, da instauração de uma nova ordem elitista, e sim de uma etapa de desordem, de rebeliões populares ameaçando as elites dominantes.

Enquanto isso, a desglobalização segue o seu curso. As elites dominantes do planeta buscam desesperadamente preservar suas posições, agravam suas disputas internas, e começam a produzir salvadores pragmáticos de todo tipo. Assim, apareceu por um lado um personagem grotesco, como Donald Trump, nos EEUU, que procura combinar xenofobia, concentração de rendimentos, reindustrialização e recomposição do esquema geopolítico global; os neofascismos europeus emergentes; e os neofascismos já instalados na América Latina. Trata-se de tentativas ilusórias de recomposição do sistema decadente que aprofundam ao mesmo tempo o saqueio: a dinâmica parasitária, já vista ao longo da história humana, que acompanha e acelera os declínios imperiais.


Nota:
(1) World Bank, "World development Indicators", 17/11/2016
(2) James Kynge, "How the Silk Road plans will be financed", Financial Times,
Mai 9, 2016.

O original encontra-se em: beinstein.lahaine.org/b2-img/Beinstein_Trump.pdf