22 de out. de 2016

O encontro de Berlim

O artigo abaixo, mais um excelente artigo the Thierry Meyssan, complementa o artigo publicado anteriormente sobre o declínio dos EEUU:
______

Em busca do bode expiatório

A Alemanha, a França, a Rússia e a Ucrânia tentaram desbloquear os conflitos ucraniano e sírio em Berlim [Por seguir o formato do primeiro encontro para tentar resolver o conflito envolvendo principalmente Rússia e Ucrânia, onde França e Alemanha participaram – ou seja, quatro países europeus –, na Normandia, França, em junho de 2014, esse encontro de Berlim foi denominado de Normandia Quatro, em oposição ao formato do encontro de Gênova, de abril de 2014, no qual os EUA participaram pressionando por seus interesses hegemônicos – NT]. No entanto, do ponto de vista russo, esses bloqueios só existem porque o objetivo dos Estados Unidos não é a defesa da democracia, da qual eles se orgulham, mas da prevenção do desenvolvimento da Rússia e da China através da interrupção das Rotas da Seda. Dispondo de superioridade convencional, Moscou, portanto, fez todo o possível para ligar o Oriente Médio à Europa Oriental. Moscou conseguiu fazer isso trocando o prolongamento da trégua na Síria pela suspensão do bloqueio dos acordos de Minsk. Por seu lado, Washington continua a procurar descarregar a sua culpa em um dos seus aliados. Depois de ter fracassado na Turquia, a CIA vira-se agora para a Arábia Saudita.

Thierry Meyssan, Rede Voltaire | Damasco (Síria) | 22 de Outubro de 2016


O conflito opondo os Estados Unidos à Rússia e à China está ocorrendo em duas frentes: de um lado, Washington busca um eventual bode expiatório ao qual imputar a responsabilidade da guerra contra a Síria; do outro, Moscou, que já ligou as situações na Síria e no Iêmen, tenta, agora, ligá-las à questão ucraniana.

Washington procura um bode expiatório

Para sair de cabeça levantada, os Estados Unidos devem passar a responsabilidade dos seus crimes para um de seus aliados. Eles têm três possibilidades : culpar a Turquia, ou a Arábia Saudita, ou os dois. A Turquia está presente na Síria e na Ucrânia, mas não no Iêmen; enquanto a Arábia está presente na Síria e no Iêmen, mas não na Ucrânia.

Turquia


Dispomos agora de informações fidedignas sobre o que realmente se passou a 15 de Julho último na Turquia – essas informações nos forçam a rever o nosso julgamento inicial.

Em primeiro lugar, verificou-se que confiar a gestão das hordas jihadistas à Turquia, após o atentado que atingiu o príncipe saudita Bandar bin Sultan, não aconteceu sem problemas: com efeito, enquanto Bandar era um intermediário obediente, Erdoğan persegue a sua própria estratégia de criação de um 17º império turco-mongol, o que o leva a utilizar os jihadistas independentemente.

Além disso, os Estados Unidos não puderam evitar as sansões contra Presidente Erdoğan por alinhar seu país economicamente à Rússia enquanto ainda é militarmente membro da OTAN.

Finalmente, com a crise na estrutura de poder mundial, o Presidente Erdoğan tornou-se o bode expiatório ideal para os EUA sair da crise síria.

Do ponto de vista norte-americano, o problema não é a Turquia, a qual é um aliado regional indispensável, nem o MIT (serviços secretos turcos) de Hakan Fidan, que organiza o movimento jihadista mundial, mas Recep Tayyip Erdoğan.

Por conseguinte, a National Endowment for Democracy (NED) primeiro tentou, em Agosto de 2013, instigar uma revolução colorida (a "revolução dos pinguins") organizando para isso manifestações no parque Gezi, em Istambul. A operação falhou, ou Washington reconsiderou.

Foi tomada a decisão de derrubar os islamistas do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) nas urnas. A CIA havia organizado a transformação do Partido Democrático do Povo (HDP) num verdadeiro partido de minorias, e preparou também uma aliança entre ele e o Partido Socialista do Povo Republicano (CHP). O HDP adotou um programa aberto de defesa das minorias étnicas (curdos) e das minorias sociais (feministas, homossexuais), e incluiu uma vertente ecológica. O CHP foi reorganizado tanto de forma a mascarar a sobre-representação dos alevitas [1] no partido, como tendo em vista promover a candidatura do antigo presidente do Supremo Tribunal. No entanto, apesar do AKP ter perdido as eleições de julho de 2015, foi impossível concretizar a aliança CHP-HDP. Como resultado, novas eleições gerais foram realizadas, em Novembro de 2015; mas, elas foram grosseiramente manipuladas por Recep Tayyip Erdoğan.

Washington decidiu então eliminar fisicamente Erdoğan. Três tentativas de assassinato ocorreram entre novembro de 2015 e julho de 2016. Contrariamente ao que foi divulgado, a operação de 15 de Julho de 2016 não foi uma tentativa de golpe de Estado; mas, uma tentativa de eliminar Recep Tayyip Erdoğan. A CIA utilizou laços industriais e militares turco-americanos para recrutar uma pequena equipe, no seio da Força Aérea, a fim de executar o presidente durante as suas férias. No entanto, esta equipe foi traída por oficiais islamistas (estes são quase um quarto nas forças armadas) e o Presidente foi avisado uma hora antes da chegada do comando. Ele foi então transferido, sob escolta de militares leais, para Istambul. Conscientes das consequências previsíveis do seu fracasso, os conspiradores lançaram um golpe de Estado sem preparação e quando Istambul ainda estava cheia de pessoas nas ruas. Evidente, eles falharam. A repressão que se seguiu não teve por fim prender apenas os autores da tentativa de assassinato, nem mesmo apenas os militares que se juntaram ao golpe de Estado improvisado, mas o conjunto dos ativistas pró-americanos – primeiramente, os laicos kemalistas, depois os islamitas de Fethullah Gülen. No total, mais de 70. 000 pessoas foram indiciadas e foi preciso libertar detidos de direito comum para aprisionar os pró-americanos.

A megalomania do Presidente Erdogan, seu extravagante palácio branco, sua falsificação das eleições, e sua repressão em todos os aspectos fizeram dele o bode expiatório ideal para os erros cometidos na Síria. No entanto, a sua resistência a uma revolução colorida e o fracasso das quatro tentativas de assassinato sugerem que não será possível eliminá-lo rapidamente...

Arábia Saudita

A Arábia Saudita é tão indispensável para os Estados Unidos como a Turquia por três razões: primeiro, pelas suas reservas petrolíferas de um volume e de uma qualidade excepcionais (embora Washington já não mais as utilize, mas, simplesmente, controle sua venda); em seguida, pela liquidez monetária de que dispõe (embora suas reservas tenham caído 70%), que permitem o financiamento de operações secretas fora do controle do Congresso; e, finalmente, pelo seu controle sobre as fontes do jihadismo. Com efeito, desde 1962 e da criação da Liga Islâmica Mundial, Riad tem financiado, em nome da CIA, as duas confrarias de onde são originários todos os quadros jihadistas no mundo: os Irmãos Muçulmanos e os Naqshbandi [Irmandade sufista (Pertencente ao sufismo – corrente doutrinária dentro do islamismo que insiste na crença absoluta em Alah – NT].

Entretanto, o carácter anacrônico desse estado, propriedade privada de uma família principesca alheia aos princípios comumente aceitos de liberdade de expressão e de religião, força à tomada de mudanças radicais.

A CIA organizou, assim, em janeiro de 2015, a sucessão do rei Abdullah. Na noite da morte do soberano, a maioria dos funcionários públicos incompetentes foi desligada de suas funções e o país foi inteiramente reorganizado segundo um plano pré-estabelecido. Daqui pra frente, o poder passou a ser repartido por três clãs principais: o rei Salman (e o seu querido filho, o príncipe Mohammed), o filho do príncipe Nayef (o outro príncipe Mohammed), e, por fim, o filho do rei falecido (o príncipe Mutaib, comandante da Guarda Nacional).

Na prática, o rei Salman (81 anos) deixa o seu filho, o vistoso príncipe Mohammed (31 anos), governar em seu lugar. Mohammed aumentou o envolvimento saudita na Síria e, depois, começou a guerra contra o Iêmen. Além disso, ele também lançou um vasto programa de reformas econômicas e sociais correspondentes à sua «Visão para 2030».

Infelizmente, os resultados não foram tão gloriosos quanto o esperado : o reino está atolado na Síria e no Iêmen. Esta última guerra volta-se contra ele com as incursões dos Hutis [rebeldes iemenitas que derrubaram o governo pró-USA – NT] no seu território e as vitórias deles sobre o seu exército. No plano econômico, as reservas petrolíferas seguras estão chegando ao fim e a derrota no Iêmen impede a exploração do «Crescente Vazio», isto é, da região que sobrepõe os dois países. A queda dos preços do petróleo permitiu, certamente, a eliminação de muitos concorrentes; mas, ela também drenou o tesouro nacional saudita, que se viu forçado a contrair empréstimos nos mercados internacionais.

A Arábia nunca foi tão poderosa e, ao mesmo tempo, tão frágil. A repressão política atingiu extremos com a decapitação do chefe da oposição, o Xeque Al-Nimr. A revolta não está apenas nascendo entre a minoria xiita, mas, também, nas províncias sunitas do oeste do país. No plano internacional, a Coligação Árabe parece impressionante; mas, está caindo aos pedaços desde a saída do Egito. A reconciliação pública com Israel, contra o Irã, levantou um clamor no mundo árabe e muçulmano – ao invés de ser o começo de uma nova aliança, ela ilustra o pânico que se apoderou da família real, agora universalmente odiada.

Para Washington, chegou o momento de escolher os elementos que é conveniente salvar na Arábia Saudita, e desembaraçar-se dos outros. A lógica indicaria o regresso à distribuição anterior do poder entre os Sudairis (mas sem o Príncipe Mohammed bin Salman, o qual se mostrou incapaz) e os Hashemitas (a tribo do falecido rei Abdallah).

A melhor solução, tanto para Washington como para os súbditos Sauditas, seria que o rei Salman morresse; que seu filho Mohammed fosse afastado do poder, que seria confiado ao outro príncipe Mohammed (o filho de Nayef); e que o Príncipe Mutaib mantivesse sua posição. Esta sucessão seria mais fácil de gerir para Washington se ocorresse antes da investidura do próximo presidente norte-americano, a 6 de janeiro de 2017. O coroado poderia então descartar todas as falhas para cima do defunto, e anunciar a paz na Síria e no Iêmen. É neste projeto que a CIA atualmente trabalha.

Na Arábia, como na Turquia e nos outros países aliados, a CIA procura manter o status quo. Para isso, limita-se a organizar, nos bastidores, tentativas de mudança de dirigentes, sem nunca tocar nas estruturas. O carácter cosmético destas modificações facilita a invisibilidade da sua atuação.


Moscou tenta negociar o Oriente Médio e a Ucrânia em conjunto

A Rússia conseguiu ligar os campos de batalha sírio e iemenita. Se as suas forças estão publicamente colocadas no Levante há um ano, no Iêmen o seu envolvimento é oficial há três meses e, aí, participam agora ativamente nos combates. Ao negociar simultaneamente o cessar-fogo em Alepo e no Iêmen, ela forçou os Estados Unidos a aceitar a conexão destes dois teatros de operações. Nos dois países, os seus exércitos mostram a sua superioridade em matéria convencional face aos aliados dos Estados Unidos, ao mesmo tempo evitando uma confrontação direta com o Pentágono. Este contorno previne Moscou de investir no Iraque, apesar dos seus antecedentes históricos neste terceiro país.

Todavia, a origem da disputa entre as duas maiores potências é fundamentalmente a interrupção das duas “Rotas da Seda” – na Síria e na Ucrânia. Logicamente, Moscou está tentando ligar os dois dossiês nas suas negociações com Washington. O que é tanto mais lógico quando a própria CIA já criou um vínculo entre os dois campos de batalha via Turquia.

Ao visitar Berlim, a 19 de outubro, o Presidente russo, Vladimir Putin, e o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, pretendiam convencer a Alemanha e a França, na ausência dos Estados Unidos, a ligar estes dossiês. Eles trocaram, pois, a extensão da trégua na Síria pelo fim do bloqueio ucraniano dos acordos Minsk. Esta troca deve irritar Washington, o qual fará tudo o que estiver ao seu alcance para a sabotar.

É claro que, no final, Berlim e Londres se alinharão com o seu suserano [aquele que, no feudalismo, era responsável e tinha o domínio do feudo – NT]: a OTAN. Mas, do ponto de vista de Moscou, mais vale um conflito congelado que uma derrota (na Ucrânia, como na Transnístria, por exemplo), e tudo o que afete a unidade da OTAN antecipa o fim da supremacia norte-americana.

Tradução: Alva (Portugal) / Marisa Choguill (Brasil)

Nenhum comentário:

Postar um comentário