4 de jul. de 2016

O Brexit e o novo mundo multipolar



No artigo abaixo, Thierry Meyssan argumenta que o Brexit foi na realidade uma bem planejada estratégia do Reino Unido para se libertar de Washington e das amarras da União Europeia.

Com o Brexit, o Reino Unido pretende retomar sua posição soberana, independente, com a rainha Elizabeth II liderando a poderosa Comunidade das Nações  (Commonwealth of Nations), fazendo negócios com a China e com a Rússia, e, assim, moldando-se ao novo mundo multipolar.
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27 anos após a queda do Muro de Berlim
O Brexit redefine a geopolítica mundial

Thierry Meyssan*, Rede Voltaire | Damasco (Síria) | 28 de Junho de 2016

Enquanto a imprensa internacional procura meios para relançar a construção europeia, ainda sem a Rússia e, agora, sem o Reino Unido, Thierry Meyssan considera que nada mais poderá evitar o colapso do sistema.  Entretanto, sublinha ele, aquilo que está em jogo não é a União Europeia em si, mas o conjunto das instituições que permitem a dominação do mundo pelos Estados Unidos e a própria integridade dos Estados Unidos.


Favorável ao Brexit  [saída do Reino Unido da União Europeia], a rainha Elizabeth II vai poder reorientar o seu país em direção ao yuan.


Ninguém parece compreender as consequências da decisão britânica de sair da União Europeia.  Os colunistas, que decifram a política partidária e perderam desde há muito tempo a noção dos jogos políticos internacionais, focam-se nos elementos de uma campanha absurda:  de um lado os adversários da imigração sem controle e, do outro, o «bicho papão» assustando o Reino Unido com as piores desgraças.

Ora, as motivações desta decisão não têm nenhuma conexão com esses temas.  A discrepância entre a realidade e o discurso político-mediático ilustra a doença da qual sofrem as elites ocidentais:  sua incompetência.

Enquanto o véu é rasgado diante dos nossos olhos, as nossas elites não podem agora compreender a situação melhor do que o Partido Comunista da União Soviética pôde encarar as consequências da queda do Muro de Berlim em Novembro de 1989:  a dissolução da URSS em dezembro de 1991, depois a do Conselho de Assistência Econômica Mútua  (Comecon) e do Pacto de Varsóvia seis meses mais tarde, seguidos pelas tentativas de desmantelamento da própria Rússia, quando esta quase perdeu a Chechênia.

Num futuro muito próximo, assistiremos igualmente à dissolução da União Europeia, depois à da OTAN, e, se eles não tiverem cuidado, ao desmantelamento dos Estados Unidos.

Que interesses estão por trás do Brexit?

Contrariamente às bravatas de Nigel Farage, o UKIP não está na origem do referendo que ele acaba de ganhar.  Esta decisão foi imposta a David Cameron por membros do Partido Conservador.

Para eles, a política de Londres deve ser uma adaptação pragmática à evolução do mundo.  Essa «nação de mercadores», como a qualificava Napoleão, constata que os Estados Unidos não são mais nem a primeira economia mundial, nem a primeira potência militar.  Não têm, portanto, razão nenhuma para continuar a ser seus parceiros privilegiados.

Assim como Margaret Thatcher não hesitou em destruir a indústria britânica para transformar o seu país num centro financeiro mundial, da mesma forma os Conservadores não hesitam, agora, em abrir as portas para a independência da Escócia e da Irlanda do Norte – e assim perdendo o petróleo do mar do Norte - para fazer da City o primeiro centro financeiro off-shore do yuan  [centro financeiro no exterior do yuan, moeda chinesa;  nt].

A campanha do Brexit foi largamente apoiada pela nobreza e pelo Palácio de Buckingham, que mobilizaram a imprensa popular para apelar ao regresso à independência.

Contrariamente ao que a imprensa europeia propaga, a saída dos britânicos da UE não se fará lentamente porque a UE vai afundar-se mais rápido do que o tempo necessário para as negociações burocráticas da sua saída.  [Como aconteceu com a URSS,] os Estados do Comecon não tiveram que negociar a sua saída porque o Comecon parou de funcionar uma vez desencadeado o movimento centrífugo.  Os Estados-membros da UE que se agarram aos destroços e persistem em salvar o que resta da UE vão perder o tempo de adaptação necessário ao novo arranjo, com o risco de experimentar as dolorosas convulsões dos primeiros anos da nova Rússia  [após o fim da URRS]:  queda vertiginosa do nível de vida e da esperança de vida.

Há uma necessidade urgente de reformar as instituições para os salvar os centenas de milhares de funcionários europeus, eleitos e colaboradores que irão, inevitavelmente, perder os seus empregos, e as elites nacionais que são igualmente dependentes desse sistema.  Todos consideram, erradamente, que o Brexit abre uma brecha pela qual os eurocépticos irão sair.  Ora, o Brexit não é mais que uma resposta ao declínio dos Estados Unidos.

O Pentágono, que está preparando a Conferência da OTAN em Varsóvia, também não compreendeu que já não está em posição de impor aos seus aliados o aumento do orçamento de defesa e o apoio às suas aventuras militares.  O domínio de Washington sobre o resto do mundo está acabado.

Mudamos de era.

O que é que vai mudar?

A queda do bloco soviético foi, antes de mais nada, a morte de uma certa visão do mundo.  Os soviéticos e os seus aliados queriam construir uma sociedade solidária onde se colocava o máximo possível de coisas em comum.  Eles acabaram numa burocracia gigantesca e com dirigentes esclerosados.

O Muro de Berlim não foi derrubado pelos anticomunistas, mas por uma coligação da Juventude Comunista e das Igrejas Luteranas.  Eles pretendiam refundar o ideal comunista descartado da tutela soviética, da polícia política e da burocracia.  Foram traídos pelas suas elites, as quais, após terem servido os interesses dos soviéticos, se precipitaram, com o mesmo ardor, para servir os dos norte-americanos.  Os mais empenhados dos eleitores do Brexit estão tentando recuperar sua soberania nacional e fazer os dirigentes oeste-europeus pagar pela arrogância com que impuseram o Tratado de Lisboa após a rejeição popular da Constituição Europeia  (2004-07).  Eles também poderão ficar decepcionados com o que vem a seguir...

O Brexit marca o fim da dominação ideológica dos Estados Unidos, aquela da democracia barata das «quatro liberdades».  No seu discurso sobre a Situação da União  (State of the Union), em 1941, o Presidente Roosevelt tinha-as definido como (1) liberdade de palavra e de expressão, (2) liberdade de cada um de louvar a seu Deus como lhe aprouver, (3) libertação da necessidade, (4) libertação do medo  [de agressão estrangeira; nt].  Se os ingleses regressarem às suas tradições, os Europeus continentais reencontrarão as questões postas pelas revoluções francesa e russa sobre a legitimidade do poder e subverterão as suas instituições, correndo o risco de ver ressurgir o conflito franco-alemão.

O Brexit também marca o fim da dominação econômico-militar dos EUA visto que a OTAN e a UE não são nada mais do que as duas faces de uma única e mesma moeda – mesmo que a Política Externa e a Segurança Comum tenham levado mais tempo a ser implementadas do que o Livre Comércio.  Recentemente, eu escrevi uma nota sobre essa política face à Síria.  Eu examinei todos os documentos internos da UE, quer tenham sido publicados ou não, e cheguei à conclusão de que foram redigidos sem nenhum conhecimento da realidade no terreno, mas, sim, a partir de notas do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, ele próprio reproduzindo as instruções do Departamento de Estado dos EUA.  Alguns anos antes, tive que fazer o mesmo com relação a um outro Estado, chegando a uma conclusão semelhante  (salvo que, nesse caso, o intermediário não fora o governo alemão, mas o francês).

Primeiras consequências no seio da UE

Atualmente, os sindicatos franceses rejeitam o Projeto de Lei sobre o Trabalho redigido pelo governo Valls com base num relatório da União Europeia que foi guiado pelas instruções do Departamento de Estado dos EUA.  Se a mobilização da CGT  (General Confederation of Labour:  Confederação Geral do Trabalho) permitiu aos franceses descobrir o papel da UE neste assunto, eles ainda não perceberam a conexão UE-EUA.  Eles perceberam que, invertendo as normas e colocando os acordos da empresa acima dos acordos da filial, o governo, na realidade, está disputando a supremacia da Lei sobre o Contrato;  mas, eles ignoram a estratégia de Joseph Korbel e dos seus dois filhos:  a sua filha natural, a democrata Madeleine Albright; e a sua ‘filha adoptiva’, a republicana Condoleezza Rice  [Joseph Korbel foi um diplomata e cientista político de origem judia que serviu como embaixador da Checo Eslováquia na Iugoslávia, foi chefe da Comissão das Nações Unidas para a Índia e o Paquistão, e foi professor de política internacional na Universidade de Denver, Colorado, USA, onde fundou a Escola de Estudos Internacionais Josef Korbel  (Joseph Korbel School of International Studies);  pai de Madeleine Albright, Secretária de Estado de Bill Clinton  (1997-2001);  orientador de Condoleezza Rice, Secretaria de Estado de George W. Bush  (2005-2009);  nt].  O professor Korbel assegurava que, para dominar o mundo, bastava que Washington impusesse relações internacionais reescritas em termos jurídicos anglo-saxônicos.  De fato, ao colocar o Contrato acima da Lei, o direito anglo-saxônico legaliza o privilégio, a longo prazo, dos ricos e os poderosos sobre os pobres e necessitados.

É provável que os franceses, os holandeses, os dinamarqueses e outros ainda tentarão separar-se da UE.  Para isso, eles terão que enfrentar a sua classe dirigente.  Mesmo que a duração deste combate seja imprevisível, o seu resultado não mais levanta qualquer dúvida.  Seja como for, no período de turbulência que se anuncia, os trabalhadores franceses dificilmente serão manipuláveis, em contraste com os seus homólogos ingleses, atualmente desorganizados.

Primeiras consequências para o Reino Unido

O Primeiro-Ministro David Cameron usou as férias de verão como desculpa para adiar sua demissão para outubro.  O seu sucessor, em princípio, Boris Johnson, pode pois preparar a mudança de modo a aplicá-la instantaneamente após a sua chegada à Downing Street  [nome da rua, em Londres, onde o Primeiro-Ministro britânico reside; nt].  O Reino Unido não esperará pela saída definitiva da UE para conduzir a sua própria política – pra começar, vai dissociar-se das sanções tomadas em relação à Rússia e à Síria.

Contrariamente àquilo que escreveu a imprensa europeia, a City de Londres não está inteiramente perturbada com o Brexit.  Tendo em conta o seu estatuto particular de Estado independente colocado sob a autoridade da Coroa, ela jamais fez parte da União Europeia.  Claro, ela não poderá mais abrigar as sedes sociais de certas companhias que irão se transferir para a União;  mas, por outro lado, ela poderá usar a soberania de Londres para desenvolver o mercado do yuan.  Já em abril, a City obteve os privilégios necessários, assinando para tal um acordo com o Banco Central da China.  Além disso, deverá desenvolver as suas atividades como um paraíso fiscal para os Europeus.

Ainda que o Brexit vá temporariamente desorganizar a economia britânica enquanto esta espera pelas novas regras, é provável que o Reino Unido –-ou, pelo menos, a Inglaterra – se reorganize rapidamente, para seu total benefício.  Resta saber se os mentores deste terremoto terão a sabedoria de compartilhar com seu povo os benefícios.  O Brexit é a volta à soberania nacional, mas não garante a soberania do povo.

O panorama internacional pode evoluir de forma muito diferente, segundo as reações que se seguirão.  Mas, mesmo que as coisas corram mal para alguns, é sempre preferível aderir à realidade, como o fazem os britânicos, ao invés de persistir num sonho até que ele se desfaça.


Tradução para o portugues do Brasil:  Marisa Choguill



Thierry Meyssan:  Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Eixo pela Paz  (
Axis for Peace).  As suas análises sobre política externa são publicadas na imprensa árabe, latino-americana e russa.  Última obra em francês:  L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations  (ed. JP Bertrand, 2007).  Última obra publicada em castelhano:  La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación  (Monte Ávila Editores, 2008)

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