Tratar seriamente da tragédia dos deslizamentos de terra no Rio implica em tratar da necessidade de reforma urbana no Brasil como solução para o problema dos assentamentos urbanos em zonas de alto risco.
Entretanto, a solução dessa questão não é tão simples quanto parece. Há muito mais a se considerar se olharmos para outros aspéctos do problema, como a estrutura da produção e da distribuição da renda no país, a expansão das metrópoles e o esvaziamento do campo.
Em outras palavras, não se trata apenas de fazer reforma urbana; é preciso considerar também a baixa renda da grande maioria dos atingidos por essa tragédia – razão principal pela qual ocupam (ou ocupavam) zonas de risco. A reforma urbana em si poderia ajudar a relocá-los; mas, não podendo atender a todas as necessidades de locação, não lhes garantiria emprego ou renda adequada.
O que se precisa, de fato, é de uma política nacional de desenvolvimento responsável, que seja a base de suporte de um planejamento integral com foco não apenas no output econômico das emprêsas mas também na distribuição da renda, na distribuição da terra – urbana e rural – de forma adequada para que, gerando oportunidades, atenda os interesses de todos e não apenas os de uma minoria.
Fala-se também em descentralização urbana como uma saída para se acalmar o crescimento desenfreado das grandes metrópoles e estimular a ocupação das cidades menores. Entretanto, essa idéia não passa de utopia enquanto a terra não for redistribuída e os objetivos da produção nacional não forem repensados. Isso porque as cidades não são apenas locais de moradia e centros de atividades sociais e culturais. As cidades são essencialmente centros econômicos, postos de troca para a produção local e para as regiões produtivas que as cercam. São as atividades produtivas das cidades e do campo que viabilizam a adequada ordenação do território.
Sem uma reforma agrária, e sem um redirecionamento da produção nacional para o atendimento das necessidades básicas do povo, não haverá produção local suficiente para estimular as trocas econômicas nas vilas e cidades menores, e as estradas continuarão a ser meros corredores de transporte para as exportações e para os emigrantes rurais e urbanos em direção aos grandes centros.
No Brasil e na América Latina, desde o início da colonização européia, a 'fazenda' é o modêlo social vigente e o 'fazendeiro' ainda é venerado como um 'deus todo-poderoso'. Obviamente, as elites rurais, 'proprietárias' da terra, não querem mudanças. Mas, a terra deve ser um bem-social, deve ser distribuída de acordo com as necessidades da sociedade, como acontece na grande maioria dos países hoje desenvolvidos e que, há séculos, realizaram sucessivas reformas agrárias distributivas (por exemplo: EEUU nos séculos XVIII e XIX; França e Suécia no século XVIII; Finlândia nos séculos XVIII, XIX e XX; Irlanda nos séculos XIX e XX; Dinamarca, Canadá e Grécia no século XIX; Japão nos séculos XIX e XX; China no século XX. Ver Wikipedia). Em uma sociedade democrática como é a nossa hoje, essa questão precisa ser examinada com atenção. Diante de uma ampla reforma da terra no país, talvez possamos pensar essa ideologia da 'propriedade rural', do 'fazendeiro', em termos de uma estratégia de re-locação.
A tragédia do Rio está a despertar um debate fundamental que precisa ser ampliado mas que somente o será à medida em que nossa democracia se torne mais participativa, ampliando-se, e à medida em que temas fundamentais passem a ser submetidos à população para sua análise e posicionamento, o que talvez somente seja possível através da democratização da comunicação no país (vê-se, aqui, mais uma razão para promovermos tal democratização). Há mérito em nos lembrarmos da necessidade da reforma urbana; entretanto, ao fazê-lo, apenas nos acercamos timidamente da ainda mais complexa e explosiva questão, realmente crucial e que deve ser abordada simultaneamente: a questão da reforma agrária.
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A tragédia das chuvas só tem uma resposta óbvia: reforma urbana
Luana Bonone, Vermelho, 13 janeiro 2011
Mais de 480 vítimas fatais até agora. Mais de 13.500 desabrigados. Pelo menos 300 desaparecidos. Incontáveis feridos ou doentes vitimados pela tragédia. Os números, dignos de uma guerra, revelam o triste cenário que serve de sinistro alerta para a importância de políticas estruturais de planejamento urbano, saneamento básico e regularização imobiliária. Este é, até agora, o extrato numérico e político das conseqüências provocadas pelas fortes chuvas na região serrana do Rio de Janeiro.
Moradores de Teresópolis (RJ) ajudam a Defesa Civil na busca por sobreviventes. Foto: Vanderlei Almeida/AFP
Em reação ao cenário desolador, a presidente Dilma Rousseff visitou as regiões mais devastadas, o Ministério da Saúde doará sete toneladas de remédios e o governo federal anuncia o investimento de R$ 780 milhões para combater os efeitos trágicos das chuvas.
O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, segue ritual parecido, apesar de repetir o cacoete de outros governadores e de prefeitos das regiões mais atingidas: culpou a natureza e outros políticos, tendo criticado "décadas de permissividade" com a ocupação de áreas irregulares. Disse ainda que, pela Constituição de 1988, o solo urbano é de responsabilidade das prefeituras.
Solidariedade
Entidades dos movimentos sociais organizam campanhas de doação de roupas, comida, colchões, remédio e até sangue. O PCdoB Petrópolis criou o núcleo "PCdoB Solidário", que ajudará as vítimas das tragédias da região serrana do Rio de Janeiro. O partido local estuda ainda a possibilidade de montar uma tenda no centro da cidade e divulga lugares em Petrópolis que já estão recebendo doações: Bauhaus, no Parque de Exposição de Itaipava, Estácio de Sá, Bikers Lounge, CEAC no Valparaíso.
A necessidade maior é de água potável. A reclamação comum é quanto ao “descaso das autoridades locais” e a cobrança é acertadíssima: “é hora de enfrentar com coragem a questão das ocupações irregulares, independentemente de serem habitadas por ricos ou pobres”.
A solidariedade vem também de fora. O internacionalismo proletário se fez presente por meio de uma nota da Federação Sindical Mundial, organização à qual a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) é filiada.
A juventude, que participará de eventos da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) na próxima semana na cidade do Rio de Janeiro, estuda colocar tendas para recolhimento de doações em suas atividades.
O Brasil está mobilizado por força da solidariedade, como esteve em todas as enchentes anteriores. O ritual é repetido ano a ano, em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em outras capitais, além de cidades no interior dos respectivos estados. Todo verão os noticiários são inundados de números informando o tamanho da tragédia causada pelas chuvas.
Ocorre que a cada ano a tragédia é maior, os investimentos emergenciais são maiores, e as políticas de prevenção não parecem crescer na mesma proporção.
A presidente Dilma e o governador Sérgio Cabral visitaram as áreas mais devastadas pelas chuvas no estado do Rio de Janeiro. Foto: Roberto Stuckert Filho / PR
Soluções estruturais
É preciso travar o combate às tragédias causadas pelas condições climáticas e pela imprudência imobiliária. Isso exige uma postura firme e organizada dos governos federal, estaduais e municipais, agindo de forma integrada e em diálogo com a comunidade.
Pois, ao contrário disso, as notícias mais comuns após o mês de março em geral são a respeito de grandes obras para desafogar o trânsito – geralmente aumentando a quantidade de áreas cobertas por asfalto, o que reduz a permeabilidade do solo. Há também notícias que merecem menos destaque nos grandes veículos de comunicação, como a redução da verba para a limpeza urbana na cidade de São Paulo, ou os constantes despejos sem alternativa de moradia às famílias desalojadas, resultando em situações como o acampamento recentemente realizado por famílias despejadas em frente à Câmara Municipal de São Paulo. No Rio de Janeiro, os movimentos de luta pela moradia encontram cenário semelhante.
Urge a implementação de políticas de reforma urbana que utilizem imóveis em locais habitáveis das cidades para fins de moradia, políticas de desassoreamento de rios e limpeza de canais, políticas de limpeza urbana que valorizem a reciclagem e a reutilização, políticas de regularização imobiliária que impeçam a construção de moradias em locais inapropriados – e que ofereçam alternativas à população que ainda não tem acesso ao sonho da casa própria. É urgente uma união de esforços que vá além da solidariedade imediata pós-tragédia, que não se limite a ações imediatas e “firmes”, como acertadamente prometeu a presidente Dilma, mas que consiga implementar soluções estruturais.
Tão urgente quanto socorrer as vítimas diretas da tragédia da vez, é estabelecer políticas e investimentos de médio e longo prazo que dêem conta de responder à altura os desafios que o crescimento das cidades apresenta ao desenvolvimento do país. Pois a tragédia das chuvas no Rio de Janeiro e em São Paulo só tem uma resposta óbvia, embora nada simples: reforma urbana.
Com informações de agências
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