Depois de tanto tempo sem colocar artigos no
blog, resolvi que, com este artigo, valeria a pena tentar reiniciar as postagens.
Pepe Escobar é brasileiro, e tem
acesso a fontes poderosas de informação. Ler seus artigos sempre ajuda quando
queremos saber ‘mais alguns detalhes’ sobre o que está ocorrendo nas esferas
mais elevadas de decisão em escala mundial. Às vezes, eu me pergunto: como será
que Pepe, sendo brasileiro, chegou a tão elevado patamar em uma profissão normalmente
controlada por profissionais dos países ocidentais imperialistas? Talvez ele
seja muito rico, curioso, critico, corajoso... Talvez ele tenha apoio de algum grupo
importante em oposição ao imperialismo... Seja lá como for, ele é brilhante! Leia
o artigo abaixo e desfrute de sua sabedoria:
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Como as Novas Rodovias da Seda estão-se Consolidando na Grande Eurásia
Pepe Escobar, The
Saker, 13 de dezembro de 2018
A Rússia está interessada
em estimular sua integração econômica com partes da Ásia, e isso se encaixa bem
com a Iniciativa Cinturão e Rodovias da China
(conforme o sítio The
Saker, esta publicação esta ocorrendo simultaneamente com a do Asia Times por acordo especial
com o autor)
O conceito de Grande Eurásia tem sido discutido nos níveis mais altos da
academia e da formulação de políticas russos há algum tempo. Esta semana, essa
política foi apresentada no Conselho de Ministros e parece destinada a ser
consagrada, sem alarde, como a diretriz principal da política externa russa no
futuro previsível.
O Presidente Putin dedica-se, incondicionalmente, a torná-la um sucesso. Já no
Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, em 2016, Putin referiu-se a
uma emergente "parceria Eurasiana".
Eu tive o privilégio na semana passada de me envolver em discussões excelentes
em Moscou com alguns dos melhores analistas e formuladores de políticas russos
envolvidos no avanço da Grande Eurásia.
Três deles se destacam: Yaroslav Lissovolik, diretor do programa do Clube de Discussão
de Valdai e especialista na política
e economia do Sul Global; Glenn Diesen, autor do fecundo Estratégia
Geoeconômica da Rússia para uma Grande Eurásia; e o lendário
Professor Sergey
Karaganov, Diretor da Faculdade de Economia Mundial e Relações Internacionais
na Universidade Nacional de Pesquisa da Escola Superior de Economia e Presidente
honorário do Presidium [Comitê Permanente
Executivo - NdT] do Conselho dos Negócios Estrangeiros e da Defesa Política,
que me recebeu em seu escritório para uma conversa confidencial.
A estrutura para a Grande Eurásia tem sido dissecada detalhadamente pelo
indispensável Clube
de discussão de Valdai, particularmente a parte denominada Redescobrir
a identidade, sexta parte de uma série chamada Para o Grande Oceano,
publicada Setembro último e de autoria de um acadêmico ‘Quem é Quem’ no Extremo
Oriente russo, liderado por Leonid Blyakher da Universidade Nacional do
Pacífico em Khabarovsk e coordenado por Karaganov, diretor do projeto.
O coração conceitual da Grande Eurásia é a Virada da Rússia para o Leste, ou guinada
para a Ásia, morada dos mercados econômicos e tecnológicos do futuro. Isto
implica em a Grande Eurásia proceder em simbiose com as Novas Rodovias da Seda
da China, ou Iniciativa Cinturão e Rodovias
(BRI – Belt and Road Initiative). Contudo, esse avançado estágio da parceria
estratégica entre a Rússia e a China não significa que Moscou vai negligenciar
seus inumeráveis laços estreitos com a Europa.
Os especialistas do Extremo-Oriente russo estão bem cientes do
"eurocentrismo de uma parte considerável das elites russas." Eles
sabem como quase todo o ambiente econômico, demográfico e ideológico na Rússia
tem sido estreitamente interligado com a Europa por três séculos. Eles
reconhecem que a Rússia tem adotado a alta cultura europeia e seu sistema de
organização militar. Mas agora, eles argumentam, chegou a hora, como uma grande
potência da Eurásia, de lucrar com "uma fusão original e auto-sustentada
de muitas civilizações"; a Rússia não apenas como um ponto de comércio ou
conectividade, mas também como uma "ponte civilizacional".
Legado de Genghis Khan
O que as minhas conversas revelaram, especialmente com Lissovolik, Diesen e
Karaganov, é algo absolutamente inovador – e praticamente ignorado em todo o
Ocidente –: a Rússia está visando estabelecer um novo paradigma, não apenas na
geopolítica e na geoeconomia, mas também a nível cultural e ideológico.
As condições são certamente maduras para isso. O Nordeste da Ásia está imerso em
um vácuo de poder. A prioridade da administração Trump – bem como a Estratégia
de Segurança Nacional dos EEUU – é a contenção da China. Japão e Coreia do Sul,
lenta mas seguramente, estão a aproximar-se da Rússia.
Culturalmente, revisando o passado da Rússia, os analistas da Grande Eurásia
podem puzzle olhos ocidentais desinformados. O relatório de Valdai, 'Em Direçao ao Grande Oceano', supervisionado
por Karaganov, observa a influência de Bizâncio, que "preservou a cultura
clássica e abraçou o melhor da cultura Oriental em um tempo quando a Europa estava
afundando na Idade das Trevas." Bizâncio inspirou a Rússia a adotar o
cristianismo ortodoxo.
O relatório também destaca o papel dos mongóis sobre o sistema político da
Rússia. "As tradições políticas da maioria dos países asiáticos são
baseadas no legado dos mongóis. Possivelmente, a Rússia e a China originaram-se
no Império de Genghis Khan," diz.
Se o atual sistema político russo pode ser considerado autoritário – ou, como
bradado em Paris e Berlim, um promotor do "illiberalismo" – os mais
superiores acadêmicos russos argumentam que uma economia de mercado protegida
por um sóbrio, sério poder militar, desempenha muito mais eficientemente do que
a democracia liberal ocidental mergulhada em crise.
Enquanto a China se dirige para o Ocidente de diversas formas, a Grande Eurásia
e a Iniciativa Cinturão e Rodovias estão destinadas a se intercalar. A Eurásia
é atravessada por cordilheiras poderosas como a cordilheira Pamir, e desertos
como o Taklamakan e o Karakum. A melhor rota terrestre é através da Rússia ou via
Cazaquistão em direção à Rússia. Em termos de crucial poder de influência, a língua
russa continua a ser a língua comum na Mongólia, na Ásia Central e no Cáucaso.
E isso nos leva à extrema importância de uma atualizada ferrovia Transiberiana–
o núcleo de conectividade atual da Eurásia. Em paralelo, os sistemas de
transporte dos "stans" da Ásia Central são estreitamente integrados à
rede russa de estradas; tudo isso deve ser reforçado no futuro próximo pela ferrovia
de alta velocidade construída pelos chineses.
O Irã e a Turquia estão conduzindo suas próprias versões de um guinada para a
Ásia. Um acordo de livre comércio entre o Irã e a União Econômica da Eurásia
(EAEU – Eurasia Economic Union) foi aprovado no início de dezembro. Irã e Índia
também irão com certeza afirmar um acordo de comércio livre. O Irã é um importante
participante do Corredor de Transporte Internacional Norte-Sul (INSTC – International
North-South Transport Corridor), o qual é essencial na condução de uma maior
integração econômica entre a Rússia e a Índia. O mar Cáspio, depois de um
recente acordo entre seus cinco Estados ribeirinhos, está reemergindo como
importante entreposto comercial na Eurásia Central. A Rússia e o Irã estão
envolvidos em um projeto conjunto para construir um gasoduto para a Índia.
O Cazaquistão mostra como a Grande Eurásia e a Iniciativa Cinturão e Rodovias são complementares; Astana é membro
de ambos, Iniciativa Cinturão e Rodovias
e União Econômica da Eurásia. O mesmo se aplica ao gateway [portão de passagem – NdT] de Vladivostok, ponto de entrada
da Eurásia para Japão e Coreia do Sul, bem como ponto de entrada da Rússia para
o nordeste da Ásia.
Em última análise, o objetivo regional da Rússia é conectar províncias do norte
da China com a Eurásia através da Trans-Siberiana e da Estrada de Ferro
Oriental chinesa – interligando Chita na China e Khabarovsk na Rússia.
Em todos os domínios, Moscou visa maximizar o retorno sobre as joias da coroa
do Extremo Oriente Russo: agricultura, recursos hídricos, minerais, madeira,
óleo e gás. A construção de usinas de gás natural liquefeito (LNG – Liquid
Natural Gas) em Yamal vastamente beneficia China, Japão e Coreia do Sul.
Espírito comunitário
O Eurasianismo, inicialmente concebido no início do século XX pelo geógrafo PN
Savitsky, o geopolítico Vernadsky GV e o historiador cultural Amilcar VN, entre
outros, via a cultura russa como sendo uma combinação única e complexa de Leste
e Oeste, e o Povo russo como pertencendo a uma "comunidade totalmente
original da Eurásia".
Isso certamente ainda se aplica. Mas, como os analistas do Clube de Valdai
argumentam, o conceito atualizado de Grande Eurásia "não é direcionado
contra a Europa ou o Ocidente"; destina-se a incluir pelo menos uma parte
significativa da UE.
A liderança chinesa descreve a Iniciativa Cinturão e Rodovias não só como
corredores de conectividade, mas também como uma "comunidade". Os russos
usam um termo semelhante aplicado à Grande Eurásia: sobornost ("espírito
comunitário").
Como Alexander Lukin da escola superior de economia e especialista no SCO tem constantemente
salientado, inclusive em seu livro China
and Russia: The New Rapprochement, tudo isso é sobre a
interligação de Grande Eurásia, BRI, EAEU, SCO, INSTC, BRICS, BRICS Plus e a
ASEAN.
A nata dos intelectuais russos – no Clube de Valdai e na Escola Superior de Economia
– bem como os mais altos analistas chineses, estão em sincronia. O próprio Karaganov
constantemente reitera que o conceito de Grande Eurásia surgiu, "em
conjunto e oficialmente", pela parceria China-Rússia: "um espaço
comum para a cooperação, paz e segurança econômica, logística e de informações,
de Xangai a Lisboa e de Nova Deli a Murmansk".
O conceito de Grande Eurásia é, naturalmente, um trabalho em andamento. O que
as minhas conversas em Moscou revelaram é sua ambição extraordinária:
posicionando a Rússia na encruzilhada geopolítica e geoeconômica chave de
ligação dos sistemas econômicos da Eurásia do Norte, Central e do Sudoeste da
Ásia.
Como Diesen nota, a Rússia e a China se tornaram aliados inevitáveis por causa
de seu "objetivo partilhado de reestruturar cadeias de valor global e
desenvolver um mundo multipolar". Não é de surpreender que a determinação de
Pequim a desenvolver plataformas tecnológicas altamente avançadas está
provocando tanta raiva em Washington. E em termos de panorama geral, faz perfeito
sentido para a Iniciativa Cinturão e Rodovias sua harmonização com a condução
da Rússia da conectividade econômica da Grande Eurásia.
Isso é irreversível. Os cães da demonização, contenção, sanções e até guerra
podem latir o quanto quiserem; mas a caravana de integração da Eurásia continua
avançando.